Quando o vazio está cheio. Axel Vervoordt.


For me stones are living souls with a spirit that resonates for millions of years, although I feel there is a different spirit in different stones.
                                  Axel Vervoordt, Wabi Inspirations

Uma vez, ofereci uma pedra ao meu marido. Num Natal de há muitos anos. Quando eu ainda não era uma casa. E então, pedi-lhe para que escolhesse um lugar bonito naquela que era a casa dele. Para abrigar a pedra que tinha trazido de uma praia com mar agreste. Muito bonita, a pedra que ofereci de presente nesse Natal. Sem irregularidades. De um redondo quase perfeito. Nada de intencionalidade, naquela pedra. Na ausência de irregularidades ou no feitio quase perfeito.
Quando passei a ser esta casa, a primeira coisa que quis ver, foi a minha pedra. Olhar o lugar onde repousava a pedra do Natal em que lemos em simultâneo o Porto Kyoto do Pedro Paixão. Estava no jardim, junto a uma árvore oriental que se enche de flores no Verão. Um lugar belo, a merecer a beleza humilde de uma pedra.
Na altura, não sabia o que era a filosofia Wabi. Nem o ZERO movement. Nem a Arte Povera. Sem sustentação, o meu gesto. Sem saber que ele adorava pedras. Os granitos do Souto Moura. Os mármores barrocos de Gian Lorenzo Bernini. As peças acumuladas no jardim. Fragmentos de colunas de séculos lá de trás. Imperfeitas, algumas das pedras. Simétricas e minimalistas, outras. Uma daquelas coisas que vinha de há muito, soube depois. O amor pelas pedras. Prolongado pela vida. Pelas nossas vidas juntas. Em busca da nobreza que há na humildade. Partilhar também isso. E os livros. Lidos em diferido.
Chegar assim aos interiores poéticos de Axel Vervoordt. Confirmar a devoção partilhada pela beleza do vazio, da ausência de ostentação. Mesmo gostando das outras coisas todas. Ou principalmente por isso. Por gostarmos juntos das outras coisas todas. As que, à pressa, são consideradas ostensivas. Pratas pesadas e espelhos barrocos. Mantas de caxemira e lenços de seda. Ou toda a beleza que se pode usar. Como a dos homens singulares imaginados pelo Tom Ford. Um homem singular, então. A evocar as camisas imaculadas, os fatos de corte irrepreensível, os sapatos envoltos em flanelas muito especiais. 
Ler estes livros. E digo outra vez: ler estes livros, é olharmos de outra forma para tudo aquilo que é considerado imperfeito ou velho ou em decadência. Estados que são negados ou ocultados. Estar estragado, estar velho, não servir, não ter utilidade. E um livro confirmar-nos na vontade de reinventar tudo o que soa a imperfeição, a vazio. Até chegarmos ao tanto que pode caber num espaço vazio. Libertar o pensamento, pela redução. Pela minimização. Ir retirando elementos, até chegarmos ao essencial. Um exercício. Uma disciplina, a de se depurar o olhar. Até não restar nada do que não interessa. Até eliminarmos todos os factores de perturbação. Uma das poucas disciplinas de que gosto muito de gostar.

Voltar a dizer um sábado.


 Mais um sábado. No Porto. Uma cidade que é muitos lugares, muitas memórias. Desta vez, o lugar de muitas deambulações lá de trás. A altura em que o sem rumo encontrava rumo ali. Na Baixa. Bem no centro da alegria ruidosa das mulheres do Bolhão. A menina das maçãs verdes e das sacas de livros. Só. A menina das maçãs verdes. Por ser preciso o silêncio. A aprender a noção do silêncio. Ainda que no meio do ruído afectuoso das mulheres francas do Norte. E o Majestic ser um refúgio. Café e torradas. Espelhos brilhantes e mesas que já viram e ouviram muito. Todas as lojas imperscrutáveis vistas de fora. Retrosarias, lojas altas com tecidos a cair como água nas montras, papéis diferentes de todos os outros. Coisas que via de fora e que procurava depois, com a curiosidade que se reinventa.
Desta vez, o Porto foi chegar a mais um lugar. Um lugar que se tornou imperioso. Um nome que evoca um filme. Império dos Sentidos, na Rua da Constituição. Peças do século XX que são ícones de agora. Cadeiras e mesas. Objectos que são para contemplar. E para imaginar em outros contextos. Conjugados com outras peças. Uma evocação das páginas miscelânicas da AD.
A conclusão de que um dia pode sempre significar chegar a um lugar que nos acrescenta. A pessoas que se tornam uma parte do que somos/fomos naquela circunstância. E daí para a frente. Ou não. Seja o que for. E então, gostei muito que o meu percurso tenha coincidido com este lugar. Que apela aos sentidos. Que apela ao sentido de casa. Ao sentido que me é caro. O de irmos erguendo uma casa com peças a que associamos contextos, histórias e pessoas. Que serão sinónimo de escolha intuitiva. Desta loja, ficaram muitas coisas a que aderi de forma intuitiva. Mesas italianas. Cadeiras onde apetece sentar prolongadamente. E objectos que apeteceu reinventar. Ou descontextualizar. Para os resgatar do estatuto de montra. E torná-los parte de uma casa.
Chegar aqui pela amizade. Dizer isso, também. A propósito de mais um lugar. A um império. Ao dos sentidos. Na Rua da Constituição.

NB: Fica também a referência à simpatia da Helena Pessoa, uma das proprietárias. E à nobreza de uma causa, que pensa nos animais. Sou sensível a esta e a muitas outras formas de fazer coisas boas. Fica mais um lugar. Onde se procura cuidar de animais e em dar-lhes uma casa que seja afecto. http://www.patavermelha.com/

Porque sim.



Para celebrar alguém que gosta de cores e que tem olhos azuis. E para mimar duas outras pessoas. O convite para um chá. Numa sexta-feira ao final da tarde. Uma introdução ao tempo sem tempo que vem com o final da semana.
Uma mesa carmim, por se querer dar cor vibrante ao encontro de final de tarde. Um serviço de chá sem delimitação no tempo. Bules de prata que nunca têm grande descanso, de tão quotidianos. Flores muito perfumadas. As frésias que havia no jardim. Bolinhos de cenoura. Sandwiches breves de salmão fumado. Chá preto de violetas. Uma tarte de côco. E toda a conversa demorada que cabe num final de tarde, entre paredes de vidro, num jardim de Inverno. Mesmo a tempo de chuva. Mesmo a tempo de nos sentirmos acolhidos pelas paredes de vidro. Lá fora, muito verde. Verde com água de chuva. E lembrar sempre que a vida é melhor quando nos damos generosamente. Ser dádiva. Ser gestos que se dão com alegria e ternura.
Uma mesa porque sim. Um chá porque sim. Bach porque sim. Por apetecer o som de cravo. Música em fuga. As fugas de Bach num universo condensado de vidro. Uma antecipação bela do que está para vir.

Uma receita sem nome e uma mesa frugal.




Não sei bem qual o nome para isto. Parece uma espécie de pizza. Mas não é bem isso, porque a massa não é de pizza. E não é bem uma tarte, porque não tem a configuração de. Não que isso constitua um problema em si. Porque foi cumprido o requisito mais elementar nestas coisas de comida: soube bem. E nunca deixo de pensar no facto de estas pequenas delícias surgirem muitas vezes do acaso, da falta de tempo ou tão só, da necessidade urgente de qualquer coisa que reconforte. Muito fácil e rápida de fazer, esta receita breve de algo a que não sei dar nome. Antes de um almoço que pedia uma fórmula inicial. Foi esta a maneira de começar um almoço num dia de sol. E sei que havia música. E uma mesa cá fora, junto às árvores. Que era quase Primavera. Agora, enquanto se escreve a receita sem nome, já é Primavera. E chove. Daquela maneira muito franca, sem espaço para grandes hesitações. Bom assim, quando a chuva é declarativa, como as frases de que gosto muito. Sem reticências, a chuva que está lá fora. E zangada, por haver direito a trovões e tudo:)

Fica a receita sem nome, mas que me soube a uma mistura de Provença e de Toscana.

Uma embalagem de massa quebrada + 3 cebolas roxas + 1 pimento amarelo + o queijo mozzarella que quisermos + azeite, flor de sal, creme de vinagre balsâmico e orégãos.

Começamos por abrir a embalagem da massa. Depois de estendida, pincela-se com um pouco de azeite e espalha-se uma pitada de flor de sal. Entretanto, é só colocar as cebolas roxas cortadas em rodelas finas, o pimento em cubos pequenos e mais um fio de azeite, flor de sal e umas gotas de creme de vinagre balsâmico. Por cima, queijo mozzarella e orégãos.
Vai ao forno entre 15 a vinte minutos, renovando-se a camada de queijo uns minutos antes de servir. Só para ficar com um aspecto irresistível:)

E o básico a acompanhar, para uma receita igualmente básica: uma salada generosa em cores e em frescura, fruta verde em mármore branco. E uma mesa frugal para dois. A acolher uma receita sem nome. Muito frugal também, a receita sem nome.

Formular a esperança.


Não conseguia não escrever sobre eles. Num dia cheio de expectativas. Em que o país estava suspenso. Em suspenso. A aguardar debates e discursos e decisões. Coisas muito importantes, essas. Mas para eles, para estes meus alunos, este também era um dia importante. Para o qual se prepararam durante dias. Horas de trabalho. Finais de tarde a ler e a pesquisar, depois das aulas. Com sol lá fora. Vozes alegres de colegas em fim de dia. E namoradas à espera:)
E então, de manhã, aquele nervoso. A chamarem muitas vezes pela professora de Português. Se sim, se estava tudo bem. Se ia correr bem. Se iam estar à altura. Perguntas repetidas. Sorrisos agitados e francos. Um abraço para dizer que sim. Que estavam preparados. Que mereciam que tudo corresse pelo melhor. Porque tinham feito tudo para que sim. Uma razão aparentemente simples ou pequena. Terem sido seleccionados para um concurso promovido pelo Diário de Notícias. E a consequência disso: uma entrevista a um escritor. A escola toda no auditório. Os colegas a torcer para que os meus alunos brilhassem. E brilharam, de tão felizes. Muito. Pela inteligência. Pelo empenho reiterado com que se devotaram durante o tempo de antecipação.
Merecem tudo de bom. Merecem que a vida seja meiga. E quando não, adivinho força. Para responderem à altura do que não os confirmar.
Dizer então, o orgulho. O orgulho cheio de carinho por eles e pelos sonhos que há em cada um. Uma das coisas muito belas de ser professora. Fazer parte de percursos que sonham. Que têm esperança. Cheios de expectativas. Não desiludir. Não matar a esperança, como ouvi dizer há dias o Professor Lobo Antunes. Não assassinar aquilo que sonha e tem esperança. Isso todos os dias. Não ser só uma coisa de hoje. Circunscrita a ocasiões, a circunstâncias excepcionais. Se escrevem um texto particularmente belo. Se têm uma intervenção inteligente. Se têm a perspicácia de reformular questões, durante uma entrevista. Se têm a vontade de serem inteiros. O fragmento repetido nas aulas, a propósito de tudo e de nada. Para ser grande, sê inteiro. Se formos inteiros, se pusermos tudo quanto somos no mínimo que fazemos, seremos grandes. Ricardo Reis. Estiveram inteiros, foram grandes. E ter o privilégio de estar lá. A assistir.
O escritor era o Afonso Cruz. Que deixou um livro confiado. E música. A dele. Blues. Música de que os meus alunos gostaram. E os nomes. Alexandra, Bárbara, Francisca, Marta e André. Um outro nome a acrescentar. Fábio. Pela caricatura da professora a oferecer uma caixa cheia de ervas aromáticas, ao escritor que tirou um dia para vir do Alentejo à nossa escola. Porque disse que o sagrado estava nas coisas pequenas, nos gestos quotidianos em que não reparamos. Por isso, por ter uma quinta onde cultiva legumes e um olival para ter azeite, pensámos em ervas aromáticas. Um presente que pode frutificar, desenvolver-se, transformar-se. Como os sonhos dos meus alunos. Os alunos da entrevista, o autor da caricatura e todos os outros.
Num dia em que se olha em frente sem se saber muito bem o que vai ser, eles ensinaram-me que se pode olhar em frente com muita esperança. Tão bom, quando um professor é ensinado. Pelos seus alunos.
Ficam aqui, também. Por fazerem parte do meu universo condensado em palavras. Por serem uma manifestação de coisas que são de guardar.

PS: Amanhã volto às receitas e às mesas:)

No último dia de Inverno.



Uma mesa de domingo a ouvir música sem metafísica. Que liberta sem abstracção. Expressão de alegria pelo dia de hoje. Pelo sol de hoje. Por isso, sol e alegria à mesa. Sol e alegria com música. A uma mesa branca.
Porque o silêncio também nos ensina a procurar a alegria que não precisa de ser racionalizada, intelectualizada. E assim, depois do silêncio destes últimos dias, a mesa da alegria que não é pensada. A mesa da vontade de just let go. Alegria e música (quase) sem metafísica. Mas há metafísica bastante em não pensar em nada. E há a música. A alegria da música de hoje.
Frésias em rosa vibrante para receber a Primavera. Já amanhã, a Primavera. E no último dia de Inverno, o primeiro mergulho do ano do meu menino de seis anos. Tão solto e livre. Tanto, que aprendeu a nadar sozinho, sem lições. Um peixinho amoroso, que acordou (bem cedo) a dizer que havia sol. Que ia estar calor. Já com os calções de banho preparados. Um mergulho breve para dar fim ao Inverno, então. Para receber a Primavera com um ritual de Verão. A alegria sem angústia existencial de uma criança. A antecipar a luz dos dias que estão para vir. A alegria de uma criança pelos dias de sol a haver.
E a música era sobre fogos-de-artifício e arco-íris:)

Gratidão.


Ir até ao fim. Das coisas. De todas as coisas que nos acontecem. As boas e as más. Principalmente das más. Paradoxalmente destas últimas. Sabendo que, de alguma forma, o que nos magoa nos faz estar mais atentos ao que encanta, ao que maravilha. Acontece assim. Desde quase sempre. A mágoa tem trazido sempre coisas boas. Bem no auge. Estar atento, portanto. Não me esquecer disto tem sido fundamental.
Foi assim na sexta-feira, bem no centro da perda da Sushi. Um telefonema que me encantou. De tão encantador. Do meu filósofo carinhoso. Palavras lindas e doces do Professor Anselmo Borges. A propósito da descoberta das coisas da Mar. As coisas que são de amar. Alguém que deu notícia. Muito bom que tenha acontecido assim. De forma gratuita e inesperada.
E então, a minha gratidão. Por sexta-feira. Pelas palavras que estão nos livros que já publicou. Nos jornais. E pelas que disse em todas as circunstâncias em que fui ouvi-lo, com expectativa. Pela mão do amor, a melhor forma de olhar e sentir o mundo.
A melhor homenagem que se pode prestar a quem escreve e pensa, é ler. E o professor Anselmo Borges escreve e pensa de uma maneira irrepetível. Com uma inteligência sem rédeas. Sem possibilidade de ser rotulada, integrada inequivocamente numa corrente, numa filosofia, até mesmo numa religião. Lembro-me de uma formulação de há uns anos. Uma página de jornal guardada. Definir é limitar. Pois a inteligência e o espírito deste filósofo é sem limites. Uma janela para o (in)finito. Um pensamento que nos faz querer pensar. O finito e o infinito. O dizível e o indizível. O material e o imaterial. E mais. O mais que puder ser pensado.
Um almoço prometido. Uma mesa. E a música que há-de haver. Até lá, a palavra: obrigada. E a quem deu notícia. Não sei quem terá dado notícia. Mas fica também essa palavra para o/a mensageiro(a).

Dizer a ausência.

Nunca falei dela aqui. Embora já me tivesse ocorrido várias vezes que sim. Que já o devia ter feito. Pelo carinho que trazia ao quotidiano. Não calhou. E agora, já não vou a tempo. De dizer de uma forma luminosa o amor que nos é ensinado pelos animais. Então, posso tentar dizer a ausência.
Muito provavelmente, a minha cadelinha deve ter sido abandonada. Aqui perto. Há uns quatro anos. Alguém que não esteve à altura do compromisso que pressupõe ter um animal de estimação. E veio até aqui. Chegou até mim. Aconteceu. Não consegui não alimentar aquele animal de olhos doces, ligeiramente amedrontados. Certamente habituada a ser afastada. E foi ficando. No início, sem nome. Não podia ser sem nome. Por isso, como me fazia lembrar um rolinho de sushi, comecei a tratá-la por Sushi. Um nome intuitivo. De comida de que não gosto. Mas dela sim. Muito. E nunca mais ninguém a chamou de "cão". Era a Sushi. Para toda a gente, passou a ser Sushi. E a minha alegria a escolher um cestinho para ela dormir, mantinhas fofas e quentes. Uma casa para ela. Porque ela era o primeiro sinal de que estava em casa. Porque a minha Sushi manifestava logo o carinho, o contentamento por me ver chegar. Uma felicidade que às vezes arranhava as pernas, a da Sushi. Mas, de alguma forma, isso tornava o meu quotidiano mais doce.
Foi atropelada. E estava em sofrimento. Uma decisão para acabar com o sofrimento de um ser que gostava incondicionalmente, sem cálculo. Sempre livre, sempre à solta. Eu e o meu filho a fazer festinhas até ao fim. Sob o olhar comovido do meu marido. Que nunca quis, por intuir que seria assim, quando se fosse. Por antecipar que cuidar de um animal implicaria isto. Também isto. Carinhos e palavras doces no fim da vida da Sushi.
Não tinha pedigree. Não era "de raça". Era relativamente pequena. Manchas castanhas e brancas. E não gostava nada de tomar banho. A única altura em que fugia de mim. Em que me ignorava ostensivamente, a uma distância prudente. Bastava ver-me com as luvas à CSI, para lhe dar banho. Mas, com uma argumentação implacável (tiras de bacon), a Sushi acabava por se render. Depois, ficava muito quieta e altiva, como uma rainha, enquanto eu a ensaboava. No fim, champôo de cerejas, para ficar perfumada. Não adiantavam nada, os meus esforços. Assim que se libertava das minhas mãos, ia a correr para a terra e para as ervas. Só para se sujar outra vez. Não havia nada a fazer. A natureza dela era assim. Quando é assim, só nos resta aceitar. 
É destas coisas de que nos lembramos, na ausência. Um lugar impreenchível. Um lugar que lhe pertencia por inteiro. Por isso, hoje não houve arranhões nas pernas, quando cheguei a casa. Nem olhares doces a pedir biscoitos. Logo à noite, quando fechar as portadas, não vou ouvir as patinhas dela a aproximar-se. Em busca de mais biscoitos e do último carinho do dia.
Porque a Sushi morreu. Um lugar vazio nos dias, agora. A minha cadelinha com nome de comida morreu. Eu estive com ela até ao fim. Pude dar-lhe isso.  

Comida que soube a Outono. No Inverno. Antes da Primavera.

A começar pela mesa. Mais uma vez. Sempre inesgotáveis, as mesas. Os lugares de reunião. Onde nos sentamos todos os dias. E todos os dias, luzes com vida. Luz que não venha de cima. Que esteja perto. Junto à comida. Aos copos. Aos talheres. Desta vez, o aroma doce das velas Ladurée. E o centro de tudo, rostos multiplicados numa metáfora. Declinada até onde quisermos. A jarra Dora Maar, Jonathan Adler. A representar uma certa ideia de infinito no rosto de uma mulher (?) Interpretações. Sempre livres, as interpretações. De tão próprias.
E à mesa, comida que conforta. Porque há chuva outra vez. Daquela chuva mais ou menos indecisa. Que não é franca. Que não chove de uma vez. Dias assim pedem conforto quente. Apesar de ser quase Primavera. Apesar de todos os supostos que deveriam chegar com a Primavera. Ainda não. Por isso, à mesa, a evocação de um sabor de Outono. Para que a comida esteja de acordo com os elementos. Um risotto de míscaros. Reservas prudentes de Outono, pensadas para quando apetecesse. Vindas do frio que conserva, estas reservas. Ainda bem que sim, que na altura em que há míscaros, houve reserva de tempo e de vontade. Para antecipar outras vontades. As vontades súbitas de comida de Outono. Desta vez, o Outono soube ao meu prato preferido. Soube a parmesão suave. Incorporado em risotto ligeiramente amanteigado. Servido num prato fundo de massa, para se manter naquele point of no return. Por ser comida para agora. Comida que não pode ficar para depois. A contrariar a ideia de agora, a ideia de guardar. De reservar. De antecipar coisas que acontecerão para a frente. Nem que essas coisas sejam tão só a vontade de evocar o Outono à mesa. Perto do início da Primavera. Num dia de chuva em que apeteceu mar. Porque a chuva, perto do mar, não tem nada de indecisão. É evidente. Declarativa. Na água do mar.
E preciso mesmo de deixar outra receita de risotto? Nem me atrevo a contar as vezes em que sim. Estão lá atrás. Risottos no Verão. Risottos na Primavera. Risottos no Outono. E no Inverno, antes da Primavera, a saber a Outono. Basta procurar lá atrás. Pelos outros risottos que já estiveram à mesa.

(In)finitude.Em Coimbra.

Mais coisas registadas no caderno verde, sempre à espera de palavras, dentro da carteira com um nome poético, Alma. Guardadas ao ritmo da interiorização. Por saber que tinham que ser guardadas. Do Professor João Lobo Antunes. Serenas e quase sussurradas. Num sábado de manhã, em Coimbra. Muito do que eu faço é dar tempo. Mais um Natal. Ir até Julho, para chegar ao Mundial de Futebol. Mais uns dias, para assistir ao casamento de uma filha. Não podemos ser assassinos da esperança. (...)Morre-se mais durante a noite, nos hospitais. Em solidão secular. (...)Grande parte do que os nossos filhos vêem nos jogos é a abolição do Homem. A aniquilação do outro. (...)A ética ensina-se pelo exemplo.(...) O médico que me ensinou a operar, ensinou-me o princípio da compaixão. O diagnóstico mais difícil: o da morte. Da ausência de sinais. E o pensamento fulgurante e inquieto de uma investigadora que não conhecia, Laura Ferreira Santos. Coisas ditas por uma criança de sete anos, ali partilhadas. Eu já sei muita coisa sobre os dinossauros. Agora, o que eu queria saber, é por que é que o meu avô morreu. A reflexão sobre a não inclusão da morte na educação, sobre o afastamento das crianças da ideia da finitude. A evocação das pessoas que se lançaram no vazio, no 11 de Setembro. Da proibição tácita e subsequente de mencionar a palavra "suicídio" nos jornais. Para destituir aquelas imagens desesperadas de intencionalidade, de deliberação. Acabar aquele pedaço de dia com as palavras de um filósofo carinhoso, que me acolhe sempre com um sorriso e boas palavras. Há muitos anos, já. O Professor Anselmo Borges. A falar de uma sociedade sem eternidade. De cada instante ser ele. Único, irrepetível e irreversível. E dos paradoxos da morte. A começar por este: a morte é o impensável que obriga a pensar. A evocação de A Morte de Ivan Illitch. Da perplexidade final. Onde é que eu estarei, quando cá já não estiver?
Os encontros. A ideia de convergência especulativa. Não obstante as divergências. Que coincidem no ponto mais estimulante: o da reflexão, da argumentação, de todas as perplexidades. São assim, os encontros de filósofos. Todos os anos assim. Desde há muitos anos. Desde a altura em que entrava na Reitoria da Faculdade de Letras de mochila e sapatilhas. Permanece em mim a ideia persistente de duas comunicações. A da esperança no Homem, formulada pelo Professor João Lobo Antunes. E a do amor que nos resgata da finitude, pelo Professor Anselmo Borges. Duas palavras: esperança e amor. A propósito da morte. Existência e Morte. No 25º Encontro de Professores de Filosofia.
Antes de ir, a cristalização do vestido para a noite. Para estar junto dos meus alunos finalistas, num ritual de passagem. Elas com vestidos compridos e passos hesitantes em sapatos altos. Eles de fato escuro, gravata e sapatos brilhantes. Muito elegantes, os alunos que vão embora este ano. Depois de cumprirem mais um passo num percurso que vai ser de continuação. Mas estar lá. Junto à alegria de cristal dos meus alunos. Mesmo que atrasada, depois de uma viagem num dia de chuva. De cabelo indisciplinado, sem mãos de cabeleireiro e passos ligeiros, de tão felizes. Aqui também, o dia feliz e brilhante dos que partem este ano. Em direcção a um futuro incerto. Mas que tenha esperança e amor. Um futuro que tenha estas duas palavras há-de ser um bom futuro. Confio eu. Por eles. Para eles.

Uma receita que não tinha nada que saber.

De vez em quando, há sabores que nos devolvem coisas que pensávamos estar lá atrás. A receita do post de hoje lembra-me a minha mãe. Nada de novo. Acontece muitas vezes. Com muitas pessoas. E, lugar-comum, era este o meu pedido para os jantares de sexta-feira, quando regressava da faculdade. Queria sempre ter arroz de polvo à minha espera. E havia sempre. Sempre o gesto carinhoso da minha mãe, devotada a satisfazer o meu pedido reiterado. Reiteradamente dedicada a fazer comida que me acolhesse no regresso. Claro que, depois de muitas sextas-feiras, acabei por me fartar. Uma daquelas coisas inevitáveis e comuns.
Mas, apesar de este arroz evocar coisas boas, também era sinónimo de uma limitação. Por não conseguir acertar no ponto de cozedura do polvo. Isto, depois de várias tentativas. Por isso, mantive-me prudentemente afastada desta fonte de frustrações e da terapia associada. Até ao dia em que me foi ensinada uma técnica infalível. E resultou. Num arroz de polvo feito por mim, do início ao fim. Sem telefonemas agitados para uma mãe paciente, a repetir instruções. Uma espécie de conquista de autonomia, então. Ou as coisas mais ou menos elaboradas que um arroz de polvo motiva.

1 polvo + 1 chávena almoçadeira de arroz carolino + 1 cebola + vinho branco + pimento verde ou vermelho + azeite + tomate em pedaços + sal e pimenta.

O polvo deve estar completamente descongelado ou fresco. Depois, corta-se em pedaços e faz-se um daqueles refogados elementares: azeite, cebola picada, pimento em cubos e tomate. Deixa-se um pouco ao lume e junta-se os pedaços de polvo e um copo de vinho branco. Fecha-se e deixa-se durante uma meia hora (com alguma vigilância, porque o tempo depende da qualidade do polvo). Findo este tempo, adiciona-se água (cerca de um litro). Deixa-se ferver e junta-se o arroz. Depois, é só esperar que fique no ponto que nós queremos e juntar sal e pimenta (muito importante não temperar com sal antes deste momento). Transfere-se para uma terrina e vai à mesa. Uma receita que não tinha nada que saber. Para os outros. Para mim, significava não conseguir, não ser capaz. Not anymore:)
A juntar à receita que não tem nada que saber, uma forma de preservar as memórias boas de garrafas de champanhe: transformá-las em jarras. Permitir que permaneçam enquanto evocação de coisas que gostámos de viver. Celebrá-las com flores e devolvê-las à mesa.  

PS: As frésias nas jarras de champanhe evocaram também alguém que tem feito parte do quotidiano. Deste quotidiano. A Emília Melo. Há uns dias que não. Nem aqui, nem no blog da Babette. Por isso, estou preocupada. Espero que esteja tudo bem. Que o silêncio signifique só uma viagem prolongada. Portishead e The XX para a Emília. Porque sei que gosta muito. Mar.

No imediato, tarte de cebola vermelha e chèvre.

Há coisas a que aderimos de imediato. Ou coisas que surgem em nós de uma forma igualmente imediata. Sem que consigamos realizar bem porquê. Foi assim com esta tarte, concebida mentalmente a caminho de casa, na última sexta-feira. Concretizada imediatamente. E gosto que seja tão simples. Na execução e nos ingredientes. Uns escassos trinta minutos da minha vida. Traduzidos numa tarte de cebola vermelha e chèvre. Uma tarte quentinha para antes de jantar. Com vinho tinto e a música que anda sempre por aqui. Tão essencial, que achei que devia ser repetida. Desta vez, como fórmula de abertura para o jantar de domingo. Para receber um amigo pintor e uma amiga que tem o nome da menina do País das Maravilhas. E eles deram-me a alegria de terem gostado. Uma alegria transformada em migalhas num prato vazio.
Consegui uma imagem de fim de tarde, nesse domingo. Acabada de fazer, a tarte de cebola vermelha. Num pedestal branco, quase imersa em verde indisciplinado. E uma outra, de sexta-feira à noite, logo a seguir ao primeiro ensaio. Associada a um creme de abóbora muito aveludado. Partilho então uma receita muito frugal. Que nos lembra o gosto de cultivar a simplicidade. Nos gestos, nos sabores. Este é a carinho imediato e a mimos espontâneos.

1 embalagem de massa quebrada + 2/3 cebolas vermelhas + metade de um pimento laranja + queijo chèvre (o suficiente para cobrir a superfície) + sal, azeite, vinagre balsâmico e pimenta rosa + umas gotas de creme de vinagre balsâmico.

Liga-se o forno, antes de começar a preparação. Retira-se a massa quebrada da embalagem, para ir "respirando". Depois, corta-se as cebolas às rodelas relativamente finas e o pimento em cubos pequenos. Leva-se ao lume numa frigideira, com azeite, sal e um pouco de vinagre balsâmico. Salteia-se ligeiramente, durante uns três minutos. Acrescenta-se a pimenta e mais vinagre balsâmico, caso seja necessário. Entretanto, estende-se a massa numa forma com fundo amovível e pica-se com um garfo. Coloca-se a cebola salteada e depois as fatias de queijo, de forma a cobrir uniformemente a superfície da tarte. Finaliza-se com umas gotas aleatórias de creme de vinagre balsâmico. Vai ao forno durante vinte minutos.

Depois, devemos fazer tudo para que seja comida enquanto quente. Para não se perder nada do aroma do queijo e da harmonia entretanto criada com o creme de vinagre balsâmico. Basta acompanhar com uma salada fresca, de tão verde. E vinho tinto. E conversa no meio de música. Coisas que acontecem à mesa. Coisas muito simples e imediatas que surgem com uma refeição.

NB: As cebolas vermelhas encontram-se com relativa facilidade nos hipermercados. O creme de vinagre balsâmico veio do supermercado do El Corte Inglès.

Somewhere. Depois de algures.

Um lugar algures. Onde se tem a sensação de estarmos fora de tempo. Numa época que já foi. Um algures no meio do silêncio de árvores centenárias. Com pavilhões ocultados pela densidade de um bosque que demorou muito a fazer. Corredores labirínticos, um jardim de inverno onde tomar o pequeno-almoço, paredes com flores pintadas, painéis dourados com ramos de árvores sulcados. E uma fachada majestosa. Com escadas que nos levam a uma época que não é de agora. Quase nos anos 20. Quase nos bailes e nos passos de dança que terão enchido aquelas salas. Quase a viver as coisas que permanecerão naquelas paredes, mesmo que recuperadas. Estarão lá as histórias. Todas as histórias adivinhadas nos rostos dos que pareciam ter ali vivido muitas coisas. Coisas de verões quentes e prolongados. Coisas de amores que não foram. Coisas suspensas nos rostos. Ou não.
Muito silêncio, ali. No meio de um bosque muito verde. Perto de uma vila quase parada nesse tempo que procurei nos rostos. Uma estação que já não é. Onde não se chega. De onde não se parte. Hotéis desmantelados, com janelas partidas e vegetação a cobrir paredes. Casas desocupadas. Pessoas à porta de cafés vazios. E então, a sensação de uma vida deslocada, a do Vidago Palace. Circunscrita ao edifício imponente, rosa-velho. Creio que queria constatar se a aura dos palaces ainda permanecia. Se iria sentir o que senti no Palace do Bussaco. Se também ali haveria aquele silêncio que nunca mais encontrei em parte nenhuma. E sim. Estava lá o mesmo silêncio. O de um tempo que não se recupera, nem que se vá em busca de. Que faz pensar em avós. Em avós com dezassete anos. Sentadas muito direitas à mesa. A usar os primeiros vestidos de mulher. Com cabelos apanhados e brincos antigos de prata velha. As primeiras pinturas no rosto. A evocação breve do aroma difícil de nomear. O das caixinhas de pó de arroz. Dias prolongados nas estâncias termais. Era assim nesse tempo. Viajar significava ficar prolongadamente. Muitas malas. Compartimentos nos quartos só para as malas. E muito podia acontecer. Porque os dias eram longos e prolongados. Com horários rígidos, ditados pelos tratamentos e pelas refeições de dieta, prescritas.
O Hotel Palace do Vidago foi recuperado. E continua lindo. Não perdeu a aura deste tempo que tentei adivinhar com palavras. Os quartos são muito confortáveis. Muito britânicos em alguns pormenores (nos tecidos dos sofás, nos tapetes) e muito nossos em outros aspectos (os sabonetes e shampôs são da Saboaria Portuguesa). Os talheres também são nossos e lindos. Cutipol. Alguma loiça Vista Alegre, muito branca e depurada. Pormenores em que fui reparando. E quis jantar, para confirmar se a comida não era de hotel. E não, não era. Muito bom, o jantar de Carnaval, com direito a ementa associada. Não fui ao Spa, para ver a arte edificada do Siza Vieira. Mas foi o meu belo filósofo. Que disse que sim, que tinha gostado. Eu fiquei a ler, num bar muito acolhedor, cheio de recantos onde apetece estar com tempo. E em silêncio. 
Falta dizer que vi Somewhere, da Sofia Coppola. Um filme belíssimo. Com uma história que acaba por ser intuída por nós. A metafísica e a filosofia que quisermos. E os detalhes. Rever o meu hotel de Milão. Os corredores do Principe di Savoia. A solidão de um homem famoso. A solidão cercada de beleza. A solidão a conduzir um Ferrari. A solidão a beber Château Petrus. A solidão que não é um lugar-comum. Um filme destes nunca seria um lugar-comum. Ainda que seja um lugar estranho, que nos deixa a pensar em possibilidades.
Então, depois de ter estado algures, acabei por ir dar a Somewhere. Bom, ter chegado. Aqui. Depois do algures.

Mesas e um intervalo.




Há algo de início no fim-de-semana. O fim-de-semana faz-me pensar na possibilidade de bons inícios. No regresso à vida que nós chamamos de todos os dias, quotidiana. Por isso, o cortar doce de Sábado e de Domingo, acentua a vontade de imaginar uma semana feita de quotidiano que não seja pesado, insuportável. Mais irrequieta no Sábado. Sempre mais irrequieta. Por apetecer mundo. Desta vez, com a minha sogrinha:). Que olhou com carinho a minha alegria muito feminina, por ter encontrado um vestido que é Primavera. Para usar nos dias luminosos da Primavera. E sumo fresco e bolo de laranja, num lanche só de nós as duas. O Sábado foi isto. Sem direito a fotografia. Mas fica em palavras. Para me lembrar do dia. Para registar um vestido e a felicidade floral que ele trouxe.
Domingo é dia de mesas. A mesa do almoço. A mesa do jantar. E havia sol. Quando há sol, quero que a mesa seja cá fora. Para que não se perca a oportunidade que nos é oferecida: a de uma refeição com muita luz. Por isso, imaginei a mesa do almoço com luz filtrada. No jardim de Inverno, uma mesa carmim, com as primeiras azáleas do ano. Para as celebrar, às flores que vão invadir o verde com fúschia vibrante.
À noite, uma mesa para amigos. Uma refeição para tentar dizer o carinho pelos meus amigos. Às vezes, é mais fácil com gestos. E então, os gestos de Domingo à tarde foram-lhes dedicados, a antecipar a noite. Traduziram-se numa mesa. E em tarte de cebola vermelha e chèvre. Em risotto. E tarte tatin. Comida simples que permite dizer melhor o afecto. Uma noite prolongada. Conversa prolongada. Música. Portishead. Preisner. O meu filho a desfalecer de cansaço:) E chá fresco de menta, antes da despedida. 
Ficam as mesas de hoje. E a vontade de ir. Amanhã. Um intervalo breve, em busca de mais coisas para guardar. Em mim. E aqui. Contar, no regresso, as coisas que são para conservar. Na memória partilhada que vai sendo construída. Feita de coisas de amar.  

Exercícios de desconstrução.

Há muito que queria falar desta revista. Ou de revistas. Mas mais desta em especial. A edição espanhola da AD, a revista que diz na capa que tem as casas mais belas do mundo. Um pouco cheia, esta formulação. Não sei se serão as mais belas. Mas são certamente, algumas das mais belas. Primeiro porque são tangíveis, no sentido de serem ambientes onde se perspectiva vida. Uma coisa que não acontece com frequência na maior parte das revistas, que nos mostram sempre lugares quase intocados (ou intocáveis). Muito especialmente as de arquitectura. Sempre demasiado conceptuais. A consumir a noção minimal. Pela repetição de imagens quase assépticas, em que não se adivinha uma cozinha desarrumada ou almofadas no chão ou crianças a comer chocolate com a verdade de que falava Álvaro Campos, na Tabacaria.
Isto porque parte do serão de sexta-feira será passado a ler e a olhar a edição deste mês. Um dia aguardado. O dia em que sai a AD. Tão bom quando coincide com a sexta-feira. Páginas que permitem a conjugação da contemplação com a vontade de tornar real o que ali é visto. Creio mesmo que nunca terminei de a ler, sem alterar alguma coisa em casa. Ou sem me lembrar, em circunstâncias posteriores, de coisas que vi nas imagens da AD.
Gosto da mistura que há nestas páginas. Das associações imprevisíveis: arte contemporânea com elementos barrocos, o étnico com o minimalista, o oriental com o industrial, o moderno e funcional com o recuperado. Muitas coisas que ensina, esta revista. Muito principalmente, a perspectivar os objectos de maneiras inesperadas. A imaginar uma cadeira do século XVI, junto a uma mesa de café dos anos 30 e na parede, uma fotografia provocatória do Jeff Koons. Exercícios de desconstrução, que nos devolvem uma realidade recriada. Sem hipótese de colocar etiquetas. De nomear claramente os estilos ou as inspirações. Bom assim, que uma revista de decoração nos permita desconstruir o real. Ou que nos faça rever códigos e referências. Enquanto descansamos num sofá, numa sexta-feira à noite. A renovar a vontade de viver mais numa casa que seja realmente vivida. Numa casa que não seja um conceito.

Seda adamascada e descontextualizada.


Depois de uma mesa branca, uma mesa carmim. Em seda adamascada. Uma manta, em vez de uma toalha. Descontextualizada, portanto. Mas apeteceu-me. Apeteceu-me que a mesa fosse voluptuosa, como esta cor quente. Muito óbvia. Sem grande espaço para interpretações. Uma mesa para duas pessoas. Com distância entre os dois lugares. Uma espécie de representação metafórica para o espaço que fica entre. The space between. Mesmo que se termine as frases do outro. Mesmo que se adivinhe os gostos e os desgostos de olhos fechados.
Mas não perder a noção do espaço que existe e que é intrínseco. O que nos torna distantes, não obstante a intimidade, a cumplicidade. Por ter sido esse espaço que desencadeou/desencadeia a vontade de o suprimir. De o eliminar. Uma coisa impossível, essa. E bela por isso mesmo. Por se ter antecipadamente como impossível.
Nos copos, vinho da África do Sul. Uma experiência partilhada. E gostada pelos dois lugares à mesa. Chama-se Glen Carlou, Grand Classique 2008. Tão voluptuoso como a cor da mesa. A permanecer na memória sensorial. A associar-se às outras coisas que estiveram à mesa carmim de seda adamascada. Ainda que descontextualizada.

PS: Obrigada ao Pedro, do Club Gourmet do El Corte Inglès. Por mais um vinho sugerido. Pelo champanhe de sábado. E pelos dos outros sábados. Enquanto se procura coisas para fazer comida. Um gesto para agradecer. Coisas pequenas de que não me esqueço, por me serem gratas.

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