Uma prova e um caminho de luzes à mesa.


Situo primeiro a parte da prova. A verdadeira possibilidade de criação surge nas circunstâncias que, à partida, não seriam terreno fértil para que se desse fosse o que fosse. Há inúmeras lições e exemplos desta ideia em variadíssimos campos. Penso nos socalcos no Douro, de repente. Onde dificilmente haveria hipótese de cultivar ou de produzir. Mas há, houve. Porque alguém se lembrou desta técnica e a aplicou. E assim, surgiu não só o vinho, mas também um património visual inesquecível. Com as devidas distâncias, evoco um cenário com que nos confrontamos muitas vezes: o que fazer com sobras de refeições? Neste caso, havia dois pedaços de frango relativamente generosos, mas que não poderiam ser, por si, uma refeição. Fui habituada pela minha mãe a não desperdiçar. Por me ter sido ensinado que há uma espécie de vertente do sagrado associada não só ao gesto de comer, mas também ao de cozinhar. Assim, aplico frequentemente este preceito tão essencial e esforço-me por não desperdiçar. E, para além de o encarar como algo que se basta enquanto ensinamento, acho também que são estas as circunstâncias em que mais ponho à prova a minha inventividade. A sós com música que inspire. E com as coisas em que penso, enquanto as minhas mãos se dedicam a transformar despojos de uma refeição em algo que não estava escrito ou previsto inicialmente. E, num final de dia, enquanto permitia que a música dos Muse se transformasse em fonte de coisas boas, surgiu uma tarte de frango com acelgas e mostarda. 
Foi assim que aconteceu:
Um refogado simples: azeite, cebola picada, pimento vermelho, uma courgette pequena e um alho francês cortados. O frango desfiado quase a seguir, sal e um pouco de vinho branco. Deixa-se refogar durante uns minutos e introduz-se as acelgas cortadas. Mais uns minutos breves ao lume e um pacote de natas. Envolve-se tudo, junta-se uma colher de sopa de mostarda, pimenta moída e mais sal, se necessário. À espera, está massa folhada, previamente picada com um garfo. Depois de se colocar o recheio sobre a massa, preenche-se a parte de cima com queijo mozzarella e emmental. A seguir, um forno quente durante 20 a 25 minutos.
E mais música e um gin tónico partilhado, enquanto se espera. Quando é tempo, serve-se quentinha com o tipo de salada que entendermos. Numa mesa onde se desenhou um caminho feito de luzes sustentadas por copos escolhidos ao acaso.

9 comentários:

  1. A sua página de ontem estava linda, quantas viagens sugerem com a maneira "apetitosa" como as descreve!
    Sim, é mesmo muito importante não desperdiçar nada, muito menos alimentos. Por respeito a quem não os tem e ainda porque assim cumprimos os ensinamentos com que fomos educadas. É essa faceta que descreve tão bem, recheada ainda de outras convicções sensatas e belas que se pressente na escrita da Mar.
    Mais um momento bonito para quem a lê!
    Beijinho.

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  2. Sempre belas e generosas, as palavras da Lusitana. O cuidado que aplicamos a fazer comida também se declina assim: nesse respeito. E nesse sentido, é fundamental conservar esse ensinamento e tentar que não seja uma coisa só discursiva. A minha mãe ensinou-me este e muitos outros preceitos. E eu gosto de aplicar as palavras, os ensinamentos. Para não serem só discursos vazios, que caiam no esquecimento.

    Um beijo de fim-de-semana para si!

    PS: Sinto-me grata pelos momentos bonitos que têm nascido destas leituras.

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  3. Um traço de luz que iluminou uma ode ao respeito pelos alimentos. Que eu partilho, e que também foi ensinamento passado pela minha mãe.
    E por falar em mãe.... Imagine lá o que é que eu ontem recebi de presente da minha mãe? O livro "Sabores da Toscana", de que eu ontem mesmo lhe falei a propósito de um certo blog. Um livro delicioso. Com todos os sabores e cores que eu imagino que a Toscana tenha. E já fiz questão de o abrir na página fotografada. E de ler novamente para mim essa frase tão cheia.
    Até amanhã, querida Mar!
    Façam uma viagem segura e tranquila...
    Um beijo
    Babette

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  4. As mães. Aprendemos tantas coisas com elas. Mesmo quando achamos que não, que em determinados aspectos não nos ensinam. Mas sim, tudo. Nos momentos determinantes e nos outros. Ontem também fui em busca de miminhos da minha mãe, a seguir a um dia cheio. Que bom ter chegado a esse livro por aqui. E é mesmo para sonhar, não é? Para antecipar o sonho que ambas partilhamos: uma viagem demorada por Itália, para fazer comida.

    Até amanhã, Babette! No sítio junto ao mar de que gostamos muito:)

    Beijo da Mar.

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  5. Muito obrigada pelas suas belas palavras, aqui e no meu pequenino espaço da bela arte que é a culinária. É e será sempre um grande prazer visitá-la, ler as suas palavras cheias de significado e sentido. Não escreve em quadra ou rima (pelo menos aqui), mas para mim a Mar é uma poetisa.
    Tal como uma professora de português que me ficou na memória até hoje, pela mestria com que nos passava os ensinamentos da disciplina e da vida, acredito que a Mar seja igualmente uma enorme referência para os seus alunos, por muito complicados que os dias possam ser. Um GRANDE bem haja.
    Sandra

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  6. Olá Mar!
    Obrigada pelas suas palavras. Têm o poder de emocionar e de confortar o coração.
    Concordo plenamente quando fala em projecto. Torna-se de facto mais real, mais atingível, mais realizável. Apenas acho a palavra "sonho" mais bonita. E é por isso que a uso. Não pretendo que seja uma quimera. Não deixarei que seja uma quimera.
    Vou enviar-lhe um mail, de resposta ao seu comentário no espaço das palavras emocionadas. E aceito a sugestão d'O livro. Já o encomendei. Porque também me quero perder nas suas páginas, fotografias e descrições. Que emocionaram a Mar. E a fizeram sonhar/projectar.
    Não sou lá grande cozinheira, prefiro antes deliciar-me com a arte dos outros. E isso faço muito bem. Elevar e sentir o prazer de quem cozinha por paixão. Mas quem sabe não seja este o livro que me faça começar a ser bem sucedida em criações culinárias? Nunca se sabe.
    Com carinho. Cristina.

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  7. Não encontrei o seu mail. Vou responder-lhe no meu cantinho. Cristina

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  8. Para a Sandra:

    Fico grata pelas coisas motivadas pelas palavras que deixo aqui. Mais ou menos erráticas. Mas que descrevem, com um profundo sentido de verdade, aquilo que vai sendo vivido. É isso que mais prezo nelas. E é por isso também que, apesar de ser um pouco cruel com as minhas palavras noutros registos, não consigo sê-lo aqui. Permito que elas nasçam, que digam os dias. Mesmo os tais dias complicados de que falou. Até mesmo esses eu procuro acarinhar. Tal como acarinho a generosidade que pressupôs mais um comentário seu. Hei-de voltar muitas vezes ao lugar onde se dedica a tornar significativos os seus dias.
    Não sei se serei uma referência para os meus alunos. Sei que gosto muito de dar aulas. E de poder assistir todos os dias aos muitos percursos que passam pelo meu. Uma outra coisa pela qual me sentir grata, creio. Fazer parte do percurso de vida dos meus alunos. Pela palavra. Pelos livros.

    Sou eu que tenho a agradecer. Muito. Por isso, obrigada a si.

    Beijo da Mar.

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  9. Para a Cristina:

    Muito bonito, o seu sonho. Muito bonito também que o seu sonho tenha chegado aqui. E estou já a pensar em formas de o tornar tangível. Para mais um passo no caminho da concretização. Dar-lhe-ei notícia disso por email.
    Mais um livro a juntar aos outros, então. Fico contente por ter possibilitado isso. E era bom que fosse de tal maneira inspirador que a fizesse gostar muito de cozinhar. Mas sabe, não temos todos que ter os mesmos interesses ou dons. Já vi que o seu é igualmente poético, cheio de sentido. E agradeço que o tenha partilhado comigo. Vai ver que há-de correr tudo bem! É uma optimista/sonhadora que lho diz:). Hoje. E as vezes que forem necessárias.

    Um beijo da Mar.

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