Como conjugar uma sopa no feminino.

Não costumo entender as coisas assim: dividindo-as entre géneros. Mas, no momento de cristalizar esta sopa quentinha, apeteceu-me associá-la a mulheres. Mulheres fotografadas pelo Mario Testino. As mulheres que encheram salas no Museu Thyssen, em Madrid. As fotografias-pretexto para uma viagem a uma cidade cheia de vida (e uma loja cheia dos meus sapatos de sola vermelha). E então, fui buscá-las às páginas do livro que trouxe de lá. Todo o nada. É o que diz a capa do livro onde estão as mulheres mais bonitas. Ou então, algumas das mulheres mais bonitas, para não ser tão definitiva na formulação. Esta canja reinventada nasceu de um dia particularmente cansativo, em que o meu carro quis vir directo para casa. Sem nenhum desvio. E apesar de haver a noção de que até era preciso o tal desvio, o cansaço foi mais determinante. O meu filho adora canja. E eu tinha prometido de manhã que sim, que faria à noite. Daquelas coisas apressadas que prometemos aos filhos, enquanto dizemos para terminarem o pequeno-almoço e lavarem os dentes e vestirem o casaco e para não se esquecerem da mochila:) Coisas que todas as mães entendem com um sorriso de compreensão. Mas a gaveta dos vegetais no frigorífico deu sinal de que talvez fosse necessário reformular ideias. Afinal não. Não havia cenouras, mas havia courgettes. E alho francês. E ovos amarelinhos. E no jardim, havia hortelã. Estava tudo bem, afinal.

Numa panela, água, sal e as partes menos nobres de um frango do campo. Quando a carne estiver cozida, retira-se para um prato, para se desfiar. E filtra-se o caldo, para ficar mais límpido. Coloca-se novamente ao lume e junta-se duas courgettes médias (sem a casca), partidas em cubos muito pequenos e um alho francês às rodelas finas. Assim que ferver, massa pontinha. Coloca-se depois a carne desfiada e mexe-se. Depois, a hortelã fresca e duas ou três gemas de ovos. Espera-se que as gemas cozam (dois minutos) e retiram-se. Para se cortarem em pedaços pequenos. Depois, voltam à canja quentinha. Rectifica-se o sal, se necessário. E serve-se a fumegar. A um filho feliz:)

E as mulheres que estão junto à canja fumegante, dão sinal de um reencontro. Um amigo. Um amigo de liceu. De muitas horas. Horas muito longas de conversa, de cumplicidade silenciosa. Que estava sempre lá. E que agora vive entre Lisboa e Madrid. O meu amigo alto, que tem a profissão de dizer um bocadinho do mundo. Agora aqui. Guardado nas coisas da Mar.
E a música em que acordei a pensar. Muito cedo. O primeiro pensamento do dia em forma de música. E, durante o pequeno-almoço, quis muito que um mensageiro distante a tivesse escolhido naquele momento. E num premir de botão...a minha música. Ali, à mesa de pequeno-almoço. O primeiro fragmento de poesia do meu dia. Que guardei, enquanto bebia café quente. Um momento a que voltei, durante o dia. E ao final da tarde, um desvio. Para ir em busca da minha música. Para que ela viesse comigo para casa. Um CD que começa pelo fim. The End. A abertura. E a que me despertou. A que fica aqui guardada. Para me lembrar de hoje.


PS: Para a Maria José Duarte. As loiças brancas da mesa de que falou, são Zara Home. E os copos são uma daquelas heranças boas. Existem aqui em casa há muitos anos. Mas já vi daquele género também na Zara Home. Igualmente lindos. Um beijo da Mar. Com gratidão.

10 comentários:

  1. Tantas emoções vividas na minha "ausência" daqui. Não posso deixar de me sentir particularmente tocada com o post anterior. Hoje mesmo, apesar do tempo apertado que significa coisas boas, irei visitar os meus avós. Que são igualmente uma "coisa" muitíssimo boa. Mãos calejadas, rostos enrugados, corações grandes. Muito belos os meus avós.
    Obrigada por no meio de tanta beleza e generosidade nos relembrar que a indiferença e a solidão são (e devem ser) combatíveis. Todos os dias. "Este país não é para velhos" também me disse muito. Muito bonito o gesto de visita quinzenal a sábios deste país. Que é muito de "velhos", uma taxa com tendência para aumentar. Somos os velhos de amanhã. É uma realidade de que nos devemos lembrar.

    Muito bonita também a foto d'hoje. O rosto semi-tapado fá-la parecer misteriosa, uma característica intrínseca às mulheres (na minha opinião). :) E música. E amizade. Para tornar o meu próprio pequeno-almoço mais rico.
    Obrigada. Tive muitas saudades deste lugar da Mar.
    Cristina

    ResponderEliminar
  2. Tão feminina que é uma canja, afinal. E materna. Dada a um filho que a pediu. E no ambiente feminino que criaste em torno dessa sopa, o punho cerrado pareceu-me de um homem. Se assim é, uma imagem que nos faz recordar que há casas, países, culturas, em que as mulheres ainda não são tratadas como deviam...
    Um bom fim-de-semana, que vai ter um dia especial. Para mim e para ti.
    Babette

    ResponderEliminar
  3. Olá Cristina:

    Também eu tive saudades suas. Mas é bom imaginar os que nos são queridos a andar pelo mundo. E assim, mais um pedacinho de mundo em si.
    Uma realidade difícil. E difícil de dizer, também. Um pudor enorme que senti ao escrever. Mas foi o que senti que queria fazer. Registar algo que me fez olhar para aquele dia de uma forma diferente. Por saber que em cada um dos dias há coisas assim. E então, não foi possível o exercício de desprendimento, de alheamento. Mas fico feliz que vá ver os seus avós. E olhar os cabelos brancos, fazer carinhos nas mãos enrugadas. Uma imagem de quietude.
    Uma boa homenagem. A de um pequeno-almoço acrescentado. Pelas palavras. Pela música. Pela amizade. Que se vai construindo sem rosto.

    Beijo de bom fim-de-semana para si. Obrigada por si.

    PS: Vou responder hoje ao seu email. Os meus alunos estão em fase de testes. E eu em fase de os corrigir. E são muitos, os meus alunos:)

    Mar

    ResponderEliminar
  4. Para a "minha" Babette:

    Foi muito intuitivo juntar as mulheres à minha canja reinventada. Apeteceu-me. Lembrei-me de Madrid, a propósito de uma amizade de muito longa data. E com Madrid, vieram as fotografias que fui ver. O punho cerrado é de uma série escultórica que se chama Reality. Comprei na Area, no ano passado. Um elemento dissonante, creio. Talvez tenha sido essa a ideia. E o pedido de um certo filósofo, que disse que nunca tinha usado aquelas mãos nas minhas fotografias:)

    Um bom fim-de-semana para ti. E a ideia antecipada dos nossos dias especiais. Para as duas. Por motivos diferentes, mas com a mesma matriz: o amor.

    ResponderEliminar
  5. Querida Mar,
    Hoje quando ia para Lisboa pensei que necessitava de recuperar alguma leveza nos meus dias. Depois de dizer isto, pensei que estava quase a repetir o título do livro do Kundera. Mas não! O que pretendo é algo menos ambicioso. São apenas pequenos momentos de bem estar e de calma. Ontem não deixei nenhum comentário à sua entrada, porque é um tema que estou a viver de forma muito intensa desde o verão. Como dizia, salvo erro a Maria Emília, vejo os meus pais perderem-se todos os dias mais um pouco num abismo de esquecimento. O facto de ser a única filha não ajuda. Muitas vezes penso que poderei não ter capacidade física para aguentar a situação, e, já não falo na parte psicológica. O blogue é para mim um espaço de terapia, para além do meu trabalho que me ajuda bastante a conseguir momentos de fuga absolutamente necessários para renovar as energias.
    Mas mudando de assunto, hoje à hora do almoço comprei dois livros cujos títulos e autores de certeza lhe dizem alguma coisa ... "Se eu morrer antes de acordar" de Ana Teresa Pereira e o "Tratado Político" de Espinosa. Não tinham a "Ética", mas esta obra interessou-me por causa das questões de cidadania. A minha aproximação à filosofia foi feita pela História da Ciência o que justifica, em parte, o desconhecimento de alguns autores.
    Nota: para não me alongar respondo-lha à outra questão no meu blogue.
    bjs

    ResponderEliminar
  6. Querida Fa:

    Eu entendi silenciosamente o seu silêncio. Lembrei-me do que aqui deixou em tempos. Sobre a sua mãe. Sobre esse abismo do esquecimento de que falou. E entendo também a parte da terapia, da fuga, dos momentos breves de felicidade. Ainda que ninguém possa ser a Fa e a sua circunstância, queria dizer que os que lhe são queridos, podem ser uma parte luminosa dessa circunstância. Que acolhe, que seca lágrimas depois de as ver soltas, que escuta em silêncio.
    Muito bom o livro da Ana Teresa Pereira. E não li o de Espinosa. O meu marido sim. Muito. Que bom conhecer uma Fa(da) que gosta de Filosofia:)

    Um fim-de-semana tranquilo e leve para si, querida Fa.

    PS: A Insustentável Leveza do Ser andou anos na mochila que me acompanhava sempre. Que ia à faculdade, que fugia comigo porque sim, que ia em busca de música. Com a Mar. Vou olhá-lo hoje. Porque o evocou.

    ResponderEliminar
  7. Achei esta foto particularmente bonita. O tecido é lindo (e fica muito bem nas suas mesas), as modelos representam uma feminilidade arisca, entre o mostra e o esconde, entre a sensualidade declarada ou uma forma "lolita" de estar. E gostei da mão. Quem está na mão de quem? ;-)
    É engraçado como uma fotografia pode ter tantas interpretações...
    "Canja de galinha para a alma". Lembro-me sempre do título deste livro (que nunca li, creio que é de auto-ajuda)quando vejo/como canja. É de facto extraordinário o aconchego que uma canja (reinventada ou não) pode proporcionar. E a sua, associada à amizade e ao salero de Madrid, está realmente muito feminina. E fez as delícias do seu filhote, acredito. E ficou tudo bem. :-)
    Sandra

    ResponderEliminar
  8. Querida,
    Passo por aqui apenas para lhe dar os parabéns pelo aniversário do seu filho e desejar-lhe um domingo feliz.
    bjs

    ResponderEliminar
  9. Olá Sandra:

    Também achei que havia muitas possibilidades de interpretação nesta imagem. A começar pelo gesto inicial: o de associar uma canja a mulheres bonitas e a uma mão masculina. Mesmo intuitivo, esse momento. Também gosto muito deste tecido. Igualmente intuitivo, o momento em que o trouxe para casa. Por ter gostado tanto das mulheres que o povoavam.
    E sim, uma canja quentinha pode ser um bálsamo. Para a alma e para o corpo. O meu filho adora. Eu só comecei a gostar verdadeiramente por ele gostar tanto. Coisas que os filhos nos trazem, creio.

    Um beijo para si também, Sandra das palavras bonitas:)

    Mar

    ResponderEliminar
  10. Obrigada, minha querida Fa(da):)

    Tive um domingo cheio de gente. À mesa. E espalhada pela casa. Mas feliz. Pela vida do meu filho. Obrigada por se ter lembrado.

    Um beijo da mãe Mar.

    ResponderEliminar

AddThis