Como é que se sabe?















Como é que se sabe que é mesmo Outono? Assim. Quando se pensa de imediato numa sopa-creme. E isso faz bem só de pensar. De abóbora, com castanhas. Bacon a estalar de quente, no momento de servir. E um twist de pimenta preta. É assim que sabemos que é mesmo Outono. Melhor: é assim que eu sei que é Outono outra vez.
Creme de abóbora com castanhas
1 cebola + 1 talo de aipo + 1 courgette + 2 cenouras + 1 batata + 2 fatias de abóbora + 10 castanhas + fatias de bacon + azeite, sal, pimenta preta e água q.b.  
Um refogado com a cebola, o aipo e o azeite. Depois, a courgette, a batata, as cenouras, a abóbora e as castanhas. Acrescenta-se mais um fio de azeite e refoga-se mais um bocadinho (2 minutos). Junta-se a água aos poucos, até cobrir os legumes. Tempera-se com sal e deixa-se cozer durante trinta minutos, depois de começar a ferver. Passa-se com a varinha, até ficar creme. Rectifica-se os temperos, se necessário. Dez minutos antes de servir, coloca-se as fatias de bacon no forno, até ficarem tostadas. Distribui-se pelos pratos, tempera-se com pimenta preta moída na hora e serve-se uma possibilidade de felicidade.

A par do Outono e de um creme quente, música que parece quase eterna. Fantasy.


Cápsulas.























São cápsulas, as coisas que guardamos num dado momento, a pensar num outro lá mais para a frente. Todos os frascos, todas as caixinhas. Vontades encapsuladas de guardar qualquer coisa de que se gosta muito ou que quer ser vivida o mais que pudermos. Do Mercado de Lagos, trago sempre pequenas cápsulas. Orégãos, flor-de-sal, pimentão doce, farinha de alfarroba, mel de flor de laranjeira, amêndoas. O Sr. Zé das especiarias e dos frutos secos enche um cesto, no último dia. Nunca vem só com aquilo que eu pedi. Ele arranja sempre mais qualquer coisa que só descubro inteiramente quando aqui chego. Para usar durante o tempo que me separa de Lagos, as tais cápsulas. Não num registo ensimesmado e hermético. É ao contrário. É muito ao contrário. Os ramos de orégãos que adornam um canto da bancada onde faço comida de todos os dias. Uma maneira de a memória sensorial andar uns bons quilómetros para sul. De repente, é a minha alegria solar em Lagos. Basta o aroma e o verde seco de um ramo de orégãos. Bem simples, a viagem.
Acontece assim com o molho de tomate feito algures em Setembro. Fica guardado um dia de Verão e depois liberta-se num dia de Outono ou de Inverno. Mais viagens no tempo, à conta destas caixinhas.
Fica uma massa muito simples. E a mesa que ela desencadeou. Com as cores e com a cadência de um Outono irrepetível: este. As coisas nunca são bem iguais. Orgânica e profusamente quente, a mesa. O azeite, o Parmesão, as folhas de orégãos, pão, uvas douradas, maçãs deste mês, um vinho do Douro, doce de tomate a querer ser conjugado com um bolo de maçãs e com café forte. A vida pode saber-nos mesmo bem, de vez em quando. Com tudo o que nos é amargo. Dizem que é assim que a vida sabe melhor. Com estes dois travos.
Massa com molho de tomate e nozes
Esta receita de molho de tomate + esparguete (+/-metade de um pacote) + sal, orégãos, queijo Parmesão e nozes q.b.
Coze-se a massa em água com sal e com um fio de azeite. Depois, retira-se, passa-se por água corrente e fria e reserva-se. Aquece-se o molho de tomate, junta-se a massa e tempera-se com sal a gosto. Envolve-se muito bem. Pouco antes de servir, uma mão cheia de Parmesão ralado e outra de orégãos. Envolve-se outra vez e serve-se bem quente. Assim: massa, uma camada de Parmesão, nozes partidas grosseiramente e mais um pouco de orégãos.

Sinais de uso.









No fundo, as mesas são como as pessoas que as (com)põem. Quando se gosta de muitas coisas diferentes, as mesas acabam por ser espelhos dessas coisas muito diferentes entre si. Quando é assim, dá para a ideia de recuperação e ir buscar uma toalha de avó, renda fina e bordados a desenhar flores. Lanternas misturadas com castiçais de prata que iluminaram três séculos de vidas. Cerâmica do "meu" Algarve com pratos étnicos e um pouco de Oriente à mistura.
A vida é para ser vivida. As coisas devem ver a luz e as cores da vida que está a ser vivida. E ir ficando com essas marcas. Marcas de uso. Sinais de uso. Tudo é usado. Usável. Nós. Os objectos que são pedaços de nós. Assim seja. Se alguma coisa se partir pelo meio, assim seja na mesma. Um sinal definitivo de uso, a quebra.


Paixão.






























Dizem que é assim que deve ser: com paixão. Um homem. Muita paciência. Muito dinheiro. Muitos leilões de arte. Muitas viagens. Muitos nomes. Damien Hirst. Andy Warhol. Cindy Sherman. Nan Goldin. Vieira da Silva. Julião Sarmento. Tápies. Barceló. A exposição foi inaugurada no sábado. Eu quis muito estar lá nesse dia. E gostei muito de ter tomado essa decisão. Também dizem que é assim que deve ser, nisto da arte.  Por causa desta exposição, uma viagem não muito longa. A um lugar onde não ia há muito.
Foi um pretexto para ir a um lugar imperdível, em S. João da Madeira. A Oliva Creative Factory. Nos vários pólos da antiga Oliva, vida. Muita. Pavilhões industriais desactivados. Reinventados. Lá dentro, exposições. Livros. Música. Dança. Do que eu gostei mais foi de as paredes conservarem aquele aspecto rough, metálico. De não haver maquilhagem, naqueles edifícios. Uma dignidade enorme, como se fosse uma pessoa, a fábrica Oliva. A quem a vida tinha trocado as voltas. A erguer-se e a dizer que, sobre aquilo que existe, pode sempre existir qualquer outra coisa. E que seja sempre aquilo que nós e a vida quisermos. Perdi-me. Literalmente, que entrei em todos os lugares onde podia haver possibilidade de me perder. Mas era sempre fácil voltar ao centro. As edificações dão-nos lições muito importantes. Sobre o carácter transitório de tudo, muito especialmente. Este lugar fez-me pensar que nem tudo é escombro, depois da queda. Reinventa-se, antes.
Um circuito muito curioso e inesperado. A indústria declina-se de muitas maneiras, ali. As máquinas pesadas. Os chapéus. Lindos, os chapéus do Museu da Chapelaria. Apaixonante, ver o trabalho delicado. A sequência de processos. As palavras dos homens que faziam os chapéus, a descrever a vida na Fepsa.
Nem de propósito. Ou muito a propósito, um livro acabado de editar. Sobre a paixão dos coleccionadores. Sempre entre a racionalidade e a paixão. Sempre entre o impulso e o controlo. Sempre entre a febre da procura e a aprendizagem da desistência. Desistir também pode ser uma arte. Fundamental. Mesmo na mais intensa das paixões, este dado.
Com o lugar e o livro, Sonic Youth.

"It always seems impossible until it's done."








Enquanto escrevo, não se sabe ainda se será uma menina de 16 anos a receber o Nobel da Paz deste ano. Enquanto escrevo, espero que sim. Que a lição aparentemente elementar dela prevaleça. Que o direito que ela reinvindicou e que lhe ia custando a vida seja mais forte. Quis ir à escola. E di-lo com uma firmeza que está para lá da estatura frágil. Da idade. Do género. Alterei os planos de aula de hoje à tarde para falar dela. Tinham uma vaga ideia, os meus alunos. Mas não do que havia determinado que uns homens, ao serviço de uma certa visão religiosa de olhos fechados tivessem decidido que deveria morrer. A lição "subversiva" desta menina é esta: "Um aluno, um professor, um livro e uma caneta podem mudar o mundo." Tão certo.
A educação para todos. Cada vez menos. E não é só lá longe. Também aqui. E vai ser pior. Até que só os filhos de quem pode pagar possam ter o direito elementar de sonhar. Porque é de sonhar que se trata. Desse direito. Sonhar ser médico quando se nasce numa aldeia longe de tudo e se acorda às 5.30 da manhã para ajudar os pais agricultores e chegar a horas às aulas. Não é história. Um dos meus colegas de liceu. Melhor aluno naquele ano. E sim, medicina. Por mérito próprio. Por paixão. Por querer muito ser ele a ditar as regras do jogo. E não o dado aleatório de ter nascido num terreno pouco fértil para sonhos.  
Ela é herdeira de um homem que está frágil. Perto da morte, dizem. Mas não se sabe ao certo. Em todo o caso, já estarão preparados os discursos sobre ele. Anda sempre comigo um papel amachucado, mas que não se desfaz. Sobre o poder da educação. E este mantra muito breve. "It always seems impossible until it's done." Repetir. Repetir. Repetir. Todos os dias. A propósito de tudo o que em nós é grande e pequeno e assim-assim. É modesto o suficiente, que não gosto de discursos edificantes e virtuosos. Muito menos em relação a uma profissão que é nobre por si. 
Quando fiz este bolo, não sabia que a última fatia iria ser um bolo de aniversário improvisado para um dos meus alunos. Também não sabia que teria de arranjar uma solução de recurso para os colegas do aniversariante e que um frasco de biscoitos seria esvaziado para um prato. As horas de almoço flash acabam por dar para algumas coisas, afinal. Também não sabia que iria ter vontade de fotografar a t-shirt de uma das minhas alunas. E com isso, a alegria dela. Os sonhos todos. Os medos todos. As omissões e as elipses. E aquilo que um professor aprende com eles. Há muitas coisas de todos os dias. Mas eu acho que sei qual é a mais importante. A maior. É a esperança. Eles não deixam que a esperança se vá. Não há meio de desaparecer, tenho aprendido. E são eles que fazem isso. Não eu. Eles.
Que ela receba o prémio. Se sim, espero que alguém lhe faça um bolo e que a faça feliz.
Bolo de iogurte com nozes e limões verdes

4 ovos inteiros + 1 iogurte natural + 4 copos (de iogurte) de açúcar + 2 copos (de iogurte) de farinha + 2 copos (de iogurte) de nozes raladas + 2 copos (de iogurte) de óleo + raspa de 1 limão (verde) + acúcar demerara para polvilhar.
Não é preciso grande história: bate-se tudo junto e leva-se ao forno durante 50 minutos. Retira-se. Desenforma-se. E polvilha-se com açúcar demerara e raspas de limão.
Com a música, uma ligação para dois lugares longínquos. Um projecto que tenta fazer coisas impossíveis todos os dias. Este: http://skateistan.org/

Há sempre qualquer coisa.










 Era um lugar de má-fama. Por causa dos prédios a degradar-se. Das lojas que pareciam ter deixado de fazer sentido, num mundo de passos acelerados em ambientes climatizados. Mercearias onde restava o cotovelo do dono, sozinho e apoiado no balcão, a olhar a rua vazia. Às vezes, quando uma rua perde umas vidas, ganha outras. Uma das consequências. E as outras vidas que a tomam, afastam outras existências. O medo é uma coisa terrível. Em todas as suas ocorrências e manifestações. Depois, vieram os artistas. Os artistas são como as pessoas que acreditam em Deus: não têm medo.
A Rua Miguel Bombarda, no Porto, é uma cidade dentro de outra cidade. Ou um mundo. Um universo. Há de tudo. De tudo. Galerias de arte contemporânea. Manifestações (i)legíveis de pensamentos à solta. Uma frutaria ao lado de uma loja de móveis nórdicos. Antiguidades vs velharias. Um jardim interior cheio de bonsais e água corrente. Uma banca de bolas de Berlim em frente a uma loja de roupa étnica. Papéis delicados ao virar de uma esquina. Gente de esquerda. Gente de direita. Gente que está ao meio. Gente que não quer estar em lugar nenhum que possa servir de etiqueta ou de gaveta. 
Do que eu gosto mais é da ideia de me perder. De me distrair e de não reparar que o tempo vai andando, ao ritmo dos passos que páram a cada porta. Há sempre qualquer coisa. Uma boneca bailarina. Uma caixa de música. Um vestido-quimono. Flores frescas. Figos numa caixa. Copos de limonada.
Arte. Muita. Do género de se gostar muito. Do género de não se gostar nada. Emergente e consagrada. De rua ou de olhar ao ritmo de champanhe. Acho piada às conversas soltas. Sobre coisas que, a maior parte das vezes, não vejo nem sinto. Gosto do (meu) silêncio. Gosto quando um quadro me faz parar. De ficar quieta. De olhar sem tentar perceber porquê. Sinto as cores e as formas como se fossem música. Dizem os entendidos que esse é o melhor dos critérios. Gostar. Com paixão. Com as cores que trazemos em nós. Acho que sou capaz disso, mesmo que não saiba dizer porquê. Como no amor, talvez. É uma coisa de não se saber porquê, também.
Neste mundo feito bairro, um lugar onde parar. A Pensão Favorita. Comida sem complicações. Um jardim fechado sobre si mesmo, mas com o céu todo por nossa conta. Um chão de que gostei muito. Móveis de avó dos anos 50, misturados com móveis dos filhos dos anos 70. E aquele toque de narrativa. A palavra "pensão" tem tantas ressonâncias. Pode ser respeitável, de fazer pensar em gente em regime de pensão completa, quase de família. Ou pode ser uma palavra clandestina, de amantes sôfregos de hora de almoço roubada ao tempo respeitável e público. E eu acho lindas e grandes e poéticas as duas coisas: as pessoas respeitáveis e as outras, que parece que fazem tudo mal.
E vontade de Hard Club. Uma história outra, a do Hard Club. Mais música. E um vídeo inesquecível. Banda sonora da rua onde há sempre qualquer coisa.


AddThis