Tiramisù ou saudades de Itália.







































Há uns dias, saudades de Itália. Muitas. Certeiras. Inapeláveis. Incontornáveis. Uma coisa de corpo. De cheiro. De sabor. Lembrei-me do  tiramisù deste lugar. Servido de uma maneira improvável, num copo de iogurte. Não é que goste muito de tiramisù. Mas disseram-me que tinha mesmo de provar a versão da Trattoria Angelina. E eu obedeci:) Ainda bem que sim. Pelo que senti nesse momento. Pelo que ficou em mim. Tanto, que determinou que fizesse um doce num dia de semana, de um momento para o outro. Sem grandes hesitações. Gosto assim. Um doce sem solenidade. Sem cerimónias. Fresco. Estranhamente leve. Já é Verão a sério e a leveza destes dias é tão de beber até ao fim. Ou de comer, neste caso:)
Tiramisù
15 biscoitos savoiardi + 200 ml de natas frescas + 1 embalagem de mascarpone + 2 chávenas (almoçadeiras) de café + 3 colheres de açúcar + 50 g de chocolate preto (75% de cacau) + as framboesas que quisermos.  
Primeiro, faz-se o café. Reserva-se, depois de se dissolver uma colher (de sopa) de açúcar. Entretanto, bate-se as natas (às quais se junta duas colheres de açúcar) e junta-se o mascarpone. Nesta altura, envolve-se muito bem e adiciona-se um pouco do café (3 a 4 colheres de sopa). Envolve-se novamente. Depois, numa taça, dispõe-se os biscoitos embebidos no café, alternados com o creme e com uma camada de chocolate ralado. Repete-se, até se acabar os biscoitos e o creme, sendo que a última camada deve ser de chocolate. No final, as framboesas.
Fica o vinho que acompanhou a refeição daquele dia. Tinha de ser italiano, dadas as tais saudades:) E mais música. Ceremony. Banda sonora de um doce feito sem cerimónias.


Isabel e João. No primeiro dia de Verão.












As pessoas à mesa no primeiro dia de Verão aconteceram na minha vida porque a conheci. Falou-se (também) nisso, neste jantar. Nesse dado tão aleatório a determinar aquela e outras circunstâncias. Recebi os pais da Babette. Vieram os dois. Fiz comida para eles, com a cumplicidade da filha, a orientar-me as possibilidades à distância. Como acontece quase sempre, só no dia é que soube mesmo qual seria a sequência da comida. Como acontece sempre, a mesa foi o que surgiu no momento em que começou a surgir das minhas mãos. As duas únicas premissas eram as cerejas e o azul cantão da loiça. Tudo o mais, surgiria a partir dessas duas certezas interiores.
Tão bom o belo. Tão bela a bondade. A generosidade. A nobreza e a delicadeza. Tão grandes, as pessoas que nos fazem querer ser melhores. Para sermos merecedores, dignos. Creio que será por aí. Os pais da Babette são assim. E muitas outras coisas. Boas, todas as que me têm chegado.
Fica a mesa com duas luzes. A do final de tarde daquele dia de Verão. E a nocturna. Com a mesa, um registo breve da comida. Polvo, porque eles gostam muito. Cerejas, porque eles gostam muito. Pastéis de Vouzela, porque eles gostam muito. Esqueci-me de registar o creme de cenoura e abóbora-manteiga. Mas também foi porque eles gostam muito. No fim de tudo, à luz das velas espalhadas pela mesa, chá de limonete.
E a melodia daquele dia, a que fui ouvindo enquanto fazia acontecer. A comida. A mesa. E tudo o mais. Acho que os meus silêncios são feitos de música. Neste dia, foi esta.


Claro que sim.






Duas coisas para começar: um creme cor de cereja e uma daquelas entradas que nos faz demorar nesses momentos iniciais. Tem feito parte: "Podes fazer aquele salteado?" Claro que sim:) 
Muito provavelmente, o melhor e o maior das nossas vidas é sempre tão "claro que sim". Uma sopa cor de cereja. Um salteado de cogumelos com ervas. Pão quente. Vinho tinto. Final de tarde. Início de noite. As horas em que nos demoramos mais a existir. Luz de fim de dia e um aroma a rosas misturado com um verde qualquer que ainda não é seco. A juntar, a beleza que vive na matéria-prima. E a Salomé, a ouvir uma repreensão. Depois de ter tentado comer o meu creme cor de cereja:)

Creme de beterraba e aipo

2 cenouras + 1 cebola + 1 courgette + 1 batata + 2 beterrabas (médias) + 1 fatia de abóbora-manteiga + 1 talo de aipo + água, sal e azeite q.b. + lascas de queijo da Ilha e pimenta preta moída.  

Numa panela, coloca-se a cebola picada, o aipo cortado e um pouco de azeite. Deixa-se refogar durante um minuto e acrescenta-se os outros legumes. Progressivamente, junta-se água, até cobrir os legumes. Um pouco de sal e deixa-se cozer durante meia hora (depois de começar a ferver). Decorrido este tempo, passa-se com a varinha mágica para ficar creme. Rectifica-se de sal e azeite, se necessário. No momento de servir, lascas de queijo da Ilha por cima e pimenta preta. 
 

Cogumelos salteados

15 a 20 cogumelos frescos + 1 cebola média + 2 dentes de alho + metade de um pimento vermelho + bacon, azeite, sal, vinagre, coentros, orégãos e pimenta preta q.b. 

Numa frigideira larga, coloca-se todos os ingredientes (excepto o vinagre, os coentros e os orégãos). Salteia-se durante uns quinze minutos. Pouco antes de retirar do lume, salpica-se com vinagre e acrescenta-se os coentros. Depois de mais um bocadinho (dois minutos), retira-se e tempera-se com a pimenta preta. Serve-se com fatias de pão quente e uma salada verde.

NB: Esta é uma daquelas coisas que pode ser servida como entrada fria ou quente. Ou então como acompanhamento. Fica bem das duas maneiras. 

Imperativo.



























Foi como se ouvisse a primeira palavra da música que fica com a mesa. Um "stop." Imperativo, exclamativo, urgente. "Pára." Uma jarra da década de 70, meio nórdica, no Príncipe Real. Claro que sim, que era mesmo de parar. Tudo o mais é retórica. Veio. Mesmo que até nem soubesse bem para quê ou porquê. Acabaria por fazer sentido. A seu tempo. E sim, tanto sentido. Com uma manta branca a servir de toalha. Marcadores azuis. Mais o laranja quase vermelho de umas taças marroquinas. Copos de refresco, muito antigos. Há-de fazer mais sentidos, que eu sei. Mas hoje fica este. A jarra vermelha com flores que tinham mesmo de ser as mais essenciais e as mais etéreas. Muitas. Muito juntas. Quase exuberantes, só por serem muitas e por estarem muito juntas.
A poesia de todos os dias é muito isto. Perceber que uma taça de azeite pode reflectir o céu e as árvores. Que o vermelho de uns tomates-cereja fica mesmo bem com o verde dos coentros e de uma cerâmica quase orgânica. E as cerejas. Tantas, por estes dias. Celebrações efémeras dos dias que parecem pássaros em voos rápidos.   

May e Axel Vervoordt.







Um livro pode ser assim como uma casa. Exactamente por aquela ideia repetida a muitos propósitos, por nos sentirmos "em casa". Inspirador a cada página, o livro a que tenho voltado uma e outra vez. Com a cadência das estações do ano a marcar o avançar das palavras e das imagens. Na comida. Nas mesas. Nos ambientes. As cores sempre renovadas da Primavera. O Verão vivido ao sol. O recolhimento doce do Outono e do Inverno.
O apelido Vervoordt tem ressonâncias que me são especialmente gratas. O universo dos antiquários. A poesia dos objectos mais essenciais. A arte que não esmaga, de distante. O antigo e o contemporâneo nos mesmos espaços. O olhar renovado, face ao que se degrada com o tempo. Mais ainda, depois deste livro. Porque antes do apelido, vem agora um nome breve: May. Os ambientes do tal apelido sempre me pareceram vividos. Não pressentia aquela aura intocável de galeria. É que o homem dos lugares cheios de poesia tem uma mulher que preenche os espaços que seriam "só" de contemplação. Nas mesas dele, ela põe uma toalha de linho e pratos de cerâmica sobre marcadores de prata. E flores. Muitas. Em jarras e copos de água. Depois, dá-lhes vida. Com comida que é os dias dos anos a passar.
Fica-se com muito, depois deste livro. A mim, chegou-me pelo homem que me ensinou a amar as pedras. Partilho-o. Entrego-o aqui também. Pousado numa das pedras que é poesia muito branca.
E música do género de se espalhar pelo meio de claustros.
  

Um certo arroz de pato.






































Esta foi a comida que marcou a vontade de regresso. Foi o que desencadeou. Por achar que valia mesmo a pena partilhar. Que a ideia de partilhar não estava adormecida ou guardada dentro de uma caixa que se coloca dentro de outra caixa.
Arroz de pato era tão-só uma daquelas coisas que comia porque a minha mãe olhava para mim à mesa. Bastava "aquele" olhar para saber que era para comer e mais nada:) Em todo o caso, isso não me impedia de achar que era comida insípida, inofensiva. Até que aconteceu isto:
Um certo arroz de pato
2 peitos de pato + metade de uma laranja + 2 talos de aipo + 2 cenouras + 1 cebola picada + metade de um pimento vermelho + 200 g de bacon + 1 chouriça + 500 g de arroz carolino + pinhões, passas, salsa, coentros, sal e azeite q.b.
Antes de mais, elimina-se a pele dos peitos de pato, antes de se levar a cozer. Coloca-se num tacho com cerca de 2 litros de água, acrescenta-se a metade da laranja, um talo de aipo e uma cenoura inteira. Tempera-se com sal e um fio de azeite. Depois de começar a ferver, deixa-se estar uns vinte minutos. Quando a carne estiver cozida, retira-se da água, desfia-se e reserva-se. O mesmo deverá acontecer com o caldo aromático onde o pato esteve a cozer.
Num outro tacho, coloca-se a cebola picada, o bacon e a chouriça cortados em pedaços pequenos e o pimento. Refoga-se um bocadinho em azeite e acrescenta-se o arroz. Envolve-se o arroz e deixa-se "fritar" durante um ou dois minutos, mexendo sempre. Logo a seguir, junta-se o pato desfiado e envolve-se. Depois, acrescenta-se a água onde cozeu o pato (que deve ser o dobro da medida de arroz), tempera-se com sal e deixa-se evaporar. Quando estiver quase, coloca-se por cima a mistura da primeira imagem ( pinhões, passas, salsa, coentros e cenoura ralada). Uns segundos depois, envolve-se tudo muito bem e leva-se ao forno. Decorridos 15 minutos em fogo médio, pincela-se com uma gema de ovo num pouco de leite. E deixa-se ficar dourado.
O vinho da Quinta do Crasto torna este certo arroz de pato ainda mais certo. Qualquer um dos vinhos daquela quinta faz com que tudo seja um bocadinho mais certo. Este é o que fica hoje. Prazer quotidiano.  



De novo.























A ver se ainda sabia como é que se fazia. A sensação era essa. Natural, expectável. Quando uma coisa é reiterada e deixa de o ser, acontece assim. Mas soube que era como aquilo de entrar na água. Uma vez aprendido, fica para sempre. Os gestos aconteceram por si. Guardar as imagens. Saber qual a música. E isto. Escrever. Dizer coisas. Tinha saudades. Aguardei. Esperei que todos os meus impulsos ficassem quietos. Tenho aprendido que os meus impulsos devem ser disciplinados. A vida diz-nos coisas e convém que, de vez em quando, sacrifiquemos algumas das nossas certezas. A realidade tem uma força difícil de verbalizar.
E então, voltar. Era até ver. E vi que sim. Que era necessário tempo de silêncio. Para preservar este lugar. Mantê-lo intacto, tanto quanto possível. Intacta, a base, decorrido o tal tempo necessário. Não obstante todos os não obstantes que vão surgindo, inevitáveis. Mas também, o que seria de nós sem esses não obstantes?
Para as pessoas que disseram que tinham saudades das mesas. Aqui estão. As que dão início ao regresso. Até ver:) Bem vistas as coisas, a nossa vida é sempre até ver.



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