E se?





























E se soubéssemos o que havia em todas as caixas fechadas que escolhemos não abrir? E se conseguíssemos o caminho que não caminhámos, na encruzilhada de uma decisão? E se tantas coisas? Todas as enumerações que quisermos, a propósito do "se". Uma partícula tão pequena. Que faz toda a diferença. Nas sintaxes de todos os dias. As que nos acontecem. E as que fazemos acontecer.
Decidir. Escolher. Dizer que não. Dizer que sim. Terminar. Começar. Recomeçar. Deixar cair coisas em nós. Deixar ir. Esperar. Não esperar. Complicados, os verbos que vamos declinando. A gramática (i)lógica que queremos tornar inteligível, certa, declinável. Mas nem na gramática as regras são estanques. As excepções parecem sempre complicar as conjugações que queremos. Fazer o quê? Talvez isto. Talvez isto.
Polvo salteado com coentros e arroz que sabe a polvo
Para o polvo:
1 polvo (médio) + 4 dentes de alho, azeite e coentros
Para o arroz:
1 cebola pequena + metade de um pimento vermelho + arroz carolino a gosto + coentros, azeite e água de cozer o polvo q.b.
Descongela-se o polvo (se for o caso) e parte-se em pedaços. Leva-se ao lume num tacho largo, com dois dentes de alhos, um fio de azeite e um pouco de coentros. Deixa-se cozinhar, tendo o cuidado de reduzir o lume depois de começar a ferver. Assim que acontecer isso, deixa-se cozinhar durante cerca de meia hora. Quando estiver pronto, retira-se os pedaços do polvo e reserva-se. Filtra-se o caldo de cozedura do polvo e reserva-se também, acrescentando mais água, caso esteja salgado (o polvo é naturalmente salgado).
Numa frigideira, um pouco de azeite e dois dentes de alhos. Uns segundos a sós, até se acrescentar os pedaços de polvo e mais coentros. Deixa-se saltear e acrescenta-se mais azeite e um pouco de vinagre, se quisermos. Antes de servir, mais coentros picados.
Para fazer o arroz, basta um refogado simples com a cebola, o pimento e um pouco de azeite. Acrescenta-se o arroz e deixa-se "fritar" no azeite, envolvendo bem com uma colher. Depois, basta juntar a água quente de cozer o polvo (o dobro da medida de arroz). Deixa-se estar até que a água evapore (sem nunca acrescentar sal). Quando estiver quase pronto, salpica-se com coentros picados e mistura-se bem, para o aroma se disseminar.
E serve-se. À espera que saiba bem. À espera que sim.

Educação Sentimental.







Digo de memória. Uma e outra vez. As palavras todas. Umas a seguir às outras. Cada uma a significar. Cada uma para não me esquecer. (...) sentir as coisas mínimas extraordinária e desmedidamente. Uma educação sentimental subversiva aparentemente inofensiva. Coisa mínima nº 1: fazer uma sopa. Coisa mínima nº 2: antecipar o sabor final enquanto se cumpre o ritual de a fazer. Coisa mínima nº 3: saber que está a chover e que aquele pedaço de tempo é irrepetível, irreproduzível. Coisa mínima nº 4: enquanto a cadência acontece, a melancolia electrónica de música minimal. Coisa mínima nº 5: a sopa é servida. Quente, em pratos fundos e elementares. Coisa mínima nº 6: aquele silêncio antes das palavras. Coisa mínima nº 7: as palavras por causa de uma sopa e aquilo que se sente. Quase imperceptível, esta sequência. Não fosse aquilo. Aquilo de querer sentir as coisas mínimas extraordinária e desmedidamente. Não fosse isso e sim. Seria imperceptível, insignificante, pequeno. Mas não.
A Educação Sentimental de Bernardo Soares. Aplicada a uma sopa que pede Inverno. Como se fosse uma espécie de invocação. Mais chuva. Mais nuvens cinzentas. Mais vento. Mais frio. Só para saber ainda mais. Só para saber ainda melhor.
Creme de feijão manteiga e alho
1 cebola média + 2 dentes de alho + 1 courgette + 8 colheres de sopa de feijão manteiga previamente cozido + 3 cenouras + 6 cubos de abóbora + azeite, sal, coentros e lascas de um queijo de pasta dura (Parmesão, Ilha, Manchego,...)
Numa panela, leva-se ao lume a cebola e os dois dentes de alho em azeite. Faz-se um refogado leve e adiciona-se um pouco de água. Entretanto, junta-se os pedaços de courgette (sem a casca), o feijão, as cenouras e a abóbora. Cobre-se com água, junta-se um pouco de sal e fecha-se com a tampa. Quando começar a ferver, reduz-se o lume e deixa-se estar a cozer durante meia hora. A seguir, passa-se tudo até ser creme. Rectifica-se os temperos (mais sal e azeite, se necessário) e serve-se. Antes de ir para a mesa, isto: lascas do queijo curado que nos apetecer, coentros picados e um fio de azeite.
E o grande de tudo o que acontece. Uma música. Um livro. Um lugar. Uma pessoa. Uma sopa. Grande, a vida. Cheia de tantas coisas mínimas. Dizem que no fim da estrada, são essas coisas mínimas que tornam as nossas vidas extraordinárias. Não há como saber antes. Mas dá para isto de dizer trechos como se fossem orações, ouvir música que é como arquitectura despojada e fazer uma sopa.

Coincidência.
































Aquilo que nos liga (ou não) às pessoas é insondável. Pode ser um abismo, de incompreensível. Ou não. Pode ser uma mesa. Tão simples quanto isso. Uma mesa.
Os destinatários da mesa das imagens são muito. E eu queria que todas as mesas fossem possíveis, para eles. Se soubesse como, juntaria tudo aquilo que significa beleza. Não deu para todas as mesas numa só. Mas deu para uma cadência que obedeceu a uma lógica afectiva muito interior. A querer ser exterior, explícita, evidente. Fui rememorando enquanto surgia tudo. O tecido com rostos de mulheres. A toalha turquesa. Pratos, copos, talheres misturados. Madeira com porcelana. Prata com azulejos. Azul e vermelho. Muita assimetria. Muita mistura de universos. De mundos. Reflexo dos que se sentariam à mesa, no fundo. Cada um a ser um universo irrepetível. E o milagre da coincidência que se repete, renovada. A uma mesa. Começou assim. Continuará assim. Com a mesa, uma palavra fundamental feita imagem: reciprocidade. Alguns dos presentes que vieram com as pessoas.
Para a Babette. Para a família da Babette. Gratidão pela dádiva de uma coincidência.

Página 67.






























Não uso nada para marcar as páginas dos livros. Memorizo a página. Vou repetindo o número mentalmente, para não o perder. Para saber a partir de que ponto é que é para recomeçar. Neste, é o número da entrada. 67. 67. 67. E fica. Até ao momento em que as mãos abrirem as páginas no lugar exacto onde ficaram.
A imagem mental do livro que estou a ler. A imagem mental de comida para dias de chuva. A imagem mental do regresso, no fim do dia. Saber que pode haver isto é como se ficasse blindada. Uma película invisível de protecção. Nem é preciso fechar os olhos nem nada. Basta saber que se nada do que é fundamental desmoronar, há as imagens que tomarão corpo.
Quando chove, é comida desta que me apetece. Servida num prato fundo, fumegante. Só com um garfo. Comida de Inverno. Comida que nos reforça por dentro. Comida que diz que está tudo bem. E se não, que sim. Que há-de ficar. Lá fora, chamam a isto de comforting food. Para mim, é comida para dias de chuva. Só. Com ou sem necessidade de consolo.
Arroz para dias de chuva
2/3 lombelos de vitela + 3 dentes de alho + metade de um pimento vermelho + 1 medida de arroz carolino + sal, azeite, vinho branco, coentros e bróculos a gosto.
Corta-se os lombelos em cubos e tempera-se directamente no tacho onde vão ser cozinhados (sal + os dentes de alho + vinho branco + azeite + coentros). Deixa-se estar uma meia hora. Decorrido este tempo, leva-se a cozinhar durante uns vinte minutos. Depois, acrescenta-se a água necessária, de acordo com a medida de arroz que entendermos. Junta-se o pimento cortado, os bróculos e deixa-se ferver. Quando sim, o arroz. Envolve-se tudo e deixa-se cozinhar, mantendo o tacho destapado. Entretanto, rectifica-se o tempero e vai-se acrescentando água, se necessário. Quando o arroz ficar cozido, junta-se mais um pouco de coentros picados. E sim. É comida para "servir de imediato".
Com a comida para dias de chuva, a música que quis ouvir hoje. 



"Não é o momento."































A mesa deste dia guardado em mim foi uma evocação fragmentária do tempo. As folhas das heras. Grãos de areia a escorrer numa ampulheta. Uma espécie de frase lapidar que o fez rir. Um vinho muito especial que precisa de muito tempo até conseguir ser inesquecível. Para ele. Para mim. Para a minha amiga italiana matar saudades do país dela. E um livro que é todos os livros. Tudo num espelho. Repetido até ao infinito de que me fala tanto.
Alegria. Porque nasceu. Tudo o mais, é para continuar a ser escrito. A vida por escrever. Alegria também por tudo o que ainda não foi escrito.

Adele è venuta a cena.
































Uma pessoa nova a significar um país. Itália nas coisas que digo e que penso. Como se fosse intravenosa. Graças a uma pessoa. O mais importante nos nossos caminhos são as pessoas. A tal ideia que passo a vida a repetir. Tem um nome e um rosto que é assim como o nome pronunciado na língua dela. Adele. Não morre na última sílaba, a palavra que é um nome que é uma pessoa. Como se quisesse persistir.
Fica o registo de duas das mesas para ela. E um bocadinho da comida. Fica isso. E a memória de que num contexto determinado, havia ela. Estava ali. E não dava para ser de outra maneira. Uma pessoa é o mundo inteiro. Querer bem a uma pessoa é querer bem ao mundo inteiro.
Courgettes salteadas com orégãos e azeitonas
2 courgettes + 1 dente de alho + 8 azeitonas + azeite, sal, vinagre balsâmico (branco) e orégãos.
Corta-se as courgettes em rodelas finas, mantendo a casca. Leva-se o dente de alho em azeite, ao lume (numa frigideira larga). Uns segundos depois, acrescenta-se as courgettes e um pouco de sal. Salteia-se durante uns dez minutos, borrifando-se com um bocadinho de vinagre. Junta-se as azeitonas partidas em pedaços pequenos e depois os orégãos. Mesmo antes de servir, mais um fio de azeite.
PS: Adele, grazie mille. Dalle parole. Tutti le parole. Una giornata difficile è stata meno difficile a causa di queste parole: "Andiamo a prendere un caffè, Mar!" In Dicembre, un caffè a Roma. Spero di avere scritto bene:)

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