Devagar.








Entre aquilo que queremos que aconteça e aquilo que realmente acontece, há uma distância inqualificável. A separar. A fazer parar. A dar que pensar. Creio que não consegui identificar as causas para o que aconteceu por estes dias. Sabia só que o que quer que fosse, teria de ser bebido até ao fim. Mesmo que esse fim não fosse inteligível ou categorizável. De vez em quando, dava jeito que o nosso interior pudesse ter gavetas ou armários. Assim, as coisas poderiam ser arrumadas. Organizadas. Mas não. Não a uma série de coisas. Não a uma mesa. Não a comida feita com alma. Só deu para manutenção. Ir fazendo. Talvez voltasse tudo. Aquilo de ficar bem só por fazer comida. Aquilo de numa mesa ir colocando bocadinhos de coisas que sozinhas parecem não ter grande significado. Mas que ganham sentido por acontecerem juntas, depois de colocadas numa mesa.
O reverso do meu encantamento é passar por este processo. O reverso é acontecer pensar "para quê". E isso aplicado a muitas dimensões. Quando é assim, é preciso deixar sedimentar. É preciso dar tempo. Até que volte a acontecer. Não pode assentar em supostos ou em calendários. Faltaria aquilo. Irremediavelmente. Aquilo de ser verdade. Era isso.
Ontem aconteceu como eu achava que teria de acontecer. Sem mais. Sem marcar antecipadamente. Sem planear. De uma hora para a outra, literalmente. Seria eu a fazer o almoço. Seria eu a pôr a mesa. Queria que fosse assim. E aconteceu assim. A mesa cá fora. A acontecer em mim daquela maneira que nunca é a mesma. Comida com a minha alma dentro. Coisas assim.
Prolongou-se, o almoço que aconteceu de improviso. Estendeu-se, preguiçoso, até às seis da tarde. À medida que a conversa ia seguindo caminhos mais ou menos erráticos e aleatórios. Bom que assim seja. Conversa à solta. Num contexto azul e lento. A coincidir com o caracol no centro da mesa. Símbolo da lentidão. Do tempo demorado, com densidade. Devagar. É assim que nós sabemos que as coisas estão a acontecer mesmo. A perdurar. Devagar.
E fica a música que fez com que a mesa fosse assim e não de outra maneira. Por ser muito devagar, nos primeiros minutos. E depois, não. Como as coisas que precisam de acontecer com tempo, no fundo. E que depois surgem sem mais. Esta mesa, este almoço, esta música. Tudo sem mais. Tudo devagar.

O Verão tem de ser possível ainda assim.


























Por esta altura, lembro-me sempre do carácter esmagador destes dias. Os que começam algures no início de Julho e que se prolongam até ao final de Agosto. São os dias em que é suposto fazer alguma coisa, ir a algum sítio, viver coisas pelas quais se esperou um ano inteiro. E isso pode ser esmagador. Assume muitas configurações. Pode esgotar-se no clássico "onde vais?". E ficar pela réplica. Ou nas versões mais de "competição", pode declinar-se por enumerações sem outro sentido que não o de esmagar o outro que interpela. Fui. Estive. Vivi. Experimentei. Vi. Conheço. Foi tudo maravilhoso. Não se diz nunca que até foi maçador em alguns momentos. Não se assume nunca as divergências que estes dias motivam. Por serem mais evidentes, se calhar. Por estarem mais ali, à frente, de inequívocas. Mas estas coisas não costumam fazer parte dos relatórios omissos.   
Estes dias também têm essa componente que não se verbaliza assim muito. A de ser suposto e pronto. Férias por ser imperativo. O doce do tempo com tempo, sim. Muito. O de se falar com os filhos e escutar-lhes as gradações. O de olharmos para o lado e sentir que com tempo ainda sabe melhor continuar a olhar para o lado. Isso é mais ou menos interior. E não se paga. Não é sujeito a reserva antecipada. Mas há o resto. O outro lado. O que acontece ao dizer que não se vai a lugar nenhum. Que não há por onde nem como antecipar. Que se faz contas à vida para saber se há para o supermercado. Para pouco mais, por este tempo que ainda vai sabendo a Verão. Apesar de tudo, o sol não se paga. Mesmo que alguns dos sítios onde brilha peçam a conta. Faz parte. Mesmo que num universo paralelo, conceba hipóteses em que essa luz é só imensa, por chegar a todos. Chamam a estas coisas de utopias. Uma das primeiras palavras em que tropecei, algures pelos doze anos. De ir ver ao dicionário o significado, na altura. Mas vou sabendo que aquela entrada está sempre a renovar-se. As utopias são cada vez mais prementes. E distantes, de muitas maneiras que nos ultrapassam.
Os registos aqui são pela vertente luminosa das coisas pequenas. As da existência quotidiana e as outras. Do que podem encerrar de significativo, por serem ou terem sido vividas. Mas o tempo todo, lembro-me interiormente de quem não pode. Não com aquela benevolência caridosa que pressupõe distanciamento. Uma profunda humanidade, nos rostos todos que não podem. Por poder ser o meu. Ou o de quem lê isto. A vida vai dando sinais de que arrisca sempre tornar-se ainda mais instável. Ainda mais imprevisível. Ainda mais esmagadora. Convém nunca esquecer isto. Eu sei que não me esqueço.
Por mais que a vocação deste espaço seja positiva. Por mais que queira só dar coisas que façam bem. Por mais que todas as coisas que já enunciei, há esta noção de bastidores. Enquanto escrevia os últimos posts, muito especialmente. Com uns números presentes. Que não páram de aumentar a cada dia. Números que são rostos. Pessoas que trabalhavam e tinham expectativas. Pessoas que cumpriram a parte delas do contrato social e que estão em filas que não acabam. Pessoas da minha idade que não conseguem mais do que uns meses a trabalhar num lugar. Depois vão para outro. E tantas vezes, até que desistem e vão embora. Pessoas que são nós. Todos temos sonhos. Todos temos mágoas e coisas que não fizemos bem. Todos temos direito a dizermos o que somos. É assim mesmo, nas conversas mais elementares. Dizemos o nome e a seguir, a profissão. E não ter isso? Não saber o que dizer nem como nos situarmos na ordem social que parece levar tudo à frente. Ainda assim, há-de ser possível Verão. Onde houver um bocadinho de sol que não se pague. Onde houver a persistência de um sorriso. Ou uma criança feliz por estar a comer um gelado. Mesmo que os pais não possam ir com ela à praia. Verão ainda assim.

Entre o dia de ontem e o de hoje, andei a ler um blog que dá rosto aos números. Um rosto e uma história por dia. Até chegar a outro número. 365. Todos os dias, mais um rosto. Em vez de um número.

http://blogues.publico.pt/odesempregotemrosto/

Com isto, a noção de que o trabalho de fundo dos jornais é o que vai fazendo a diferença no mundo que é assim como um barco num mar tempestuoso. Por nos atirar de um lado para o outro, a ver se não conseguimos parar em momento nenhum. Os jornais fazem isso. Ajudam-nos a parar. Precisam de tempo. Nosso e dos que o fazem. E com tempo, o pensamento é mais livre. Fica à solta. Não fica só pelo que lhe é atirado pelas vozes frenéticas e esquizofrénicas da televisão. Os jornais de todos os dias, com páginas a sério, escritas por gente a sério, também são coisas d' amar.

Inflatable.






Tudo o que acontece tem necessariamente a ver com ele. Destinatário e motivador. Implacável nas apreciações. Por querer (o) bem. Como é que ele diz? Que "não conta histórias". E não. Se sabe bem, sabe bem. Se não, é não mesmo. Sem complacência e sem apelo. Gosto da nossa maneira crua de colocar as coisas em cima da mesa. Aconteça o que acontecer, dizemos as coisas. As que se gosta de ouvir. E as outras, as que custam. Lagos não seria nada assim, se ele não existisse. Não é só uma questão de ingredientes. Nem se trata de mim e dos meus traços. Fica feliz com estas coisas todas. E estas coisas eu consigo. Não consigo uma série de outras que gostava de conseguir. Mas estas sim. Isto das imagens foi especialmente para ele. Eu não gosto assim muito de comida com cascas. Mas ele adora. Então, fui sozinha ao mercado, para preparar uma surpresa à minha medida. Consegui lingueirão. E pensei em duas versões possíveis. Muito juntas numa única refeição. Que começou com salada de alfaces, figos e uvas.
Com isto, uma música que é memória. Eu andava algures por Vilar de Mouros, em 2002. Ele não. Depois disso, nunca mais andei sozinha nos meus concertos. A história a sério começou com esta música. Memória de uma decisão silenciosa, a música que vamos ouvir juntos numa sala, em Lisboa. Daqui a uns dias. Dez anos depois. Inflatable. Com tudo o que estas coisas têm de etéreo. Nada é garantido e confortável e previsível. Bom que assim seja.

Nota: O lingueirão deve ser cozido durante dois minutos, em água a ferver. Retira-se e coa-se a água, reservando-se para o arroz.

Lingueirão na sertã

Depois de cozido, leva-se ao lume numa frigideira, com azeite e dois dentes de alho esmagados. Acrescenta-se flor de sal a gosto, vinagre, azeite e coentros picados. Serve-se de imediato.

Arroz de Lingueirão (adaptado do livro Sabores da Cozinha Algarvia, Vila)

1 litro de água de cozer o lingueirão + meio quilo de lingueirão + 1 chávena almoçadeira de arroz carolino + 1 cebola picada + 1 dente de alho + metade de um pimento vermelho + 1 tomate coração-de-boi + sal, azeite e coentros a gosto.

Faz-se um refogado com a cebola, o alho, o pimento, o azeite e o lingueirão partido. Quando a cebola estiver translúcida, acrescenta-se a água de cozer. Assim que começar a ferver, junta-se o arroz e um pouco de sal. Deixa-se cozer, até ficar caldoso. Rectifica-se de sal e acrescenta-se os coentros picados. Serve-se de imediato.

Ao Sul.




A matriz é o mar. É o mar que determina aquilo de que se faz a cozinha dos lugares em que ele habita. A água, o sol, a areia quente nos pés, fazem com que apeteça que a comida seja assim como estas coisas. Etérea, por não pesar. E persistente na nossa memória sensorial. Porque à água e ao sol que nos doura a pele, se acrescenta sabores matriciais. Uma das maneiras mais bonitas de dar início a uma refeição com o mar no olhar. Pão com coisas que sabem a Mediterrâneo. Pão com coisas que nos fazem querer viver mais o mar e a terra. Numa dimensão humilde e com o mar como referência, ensaiamos coisas destas. Para então sabermos que onde quer que haja mar a Sul, esta poderá ser sempre uma das suas odes.

Pão "Ao Sul"

4 fatias de pão alentejano + 1 tomate coração-de-boi + 1 dente de alho picado + 1 cebolinho + 8 azeitonas + 1 colher de chá de açúcar + azeite, flor de sal, orégãos e lascas de parmesão a gosto.

Leva-se ao forno as fatias de pão, ligeiramente pinceladas com azeite e salpicadas com orégãos. Entretanto, numa frigideira, faz-se o alho em azeite, a que se junta o tomate cortado em pedaços, o cebolinho, as azeitonas descaroçadas e a colher de açúcar. Deixa-se cozinhar durante uns cinco minutos, depois de se temperar com flor de sal. Quando estiver pronto, os orégãos. Põe-se esta mistura nas fatias de pão (que devem estar ligeiramente torradas) e deixa-se estar cinco minutos no forno. No momento de servir, as lascas de parmesão e mais orégãos.

Património.





Sobre este lugar, já muito foi escrito. Palavras superiores e muito mais entendidas do que as minhas. Mas as experiências que temos são sempre irrepetíveis. Tal como nós. E o que aconteceu neste lugar foi ter sido feliz mais um bocadinho. Foi ter sentido que aquela casa térrea, aqueles aromas, aquela meia luz, fizeram com que gostasse (ainda) mais de continuar a andar por aqui. Efeitos de uma cozinha com arte próxima do chão quente do Sul.
Os restaurantes podem ter várias consequências em nós. Podemos sentir que aqueles domínios nos deixam à porta de qualquer coisa. Por nos ultrapassarem. Por nos dizerem tacitamente que aquilo que ali vivemos só poderá ser reproduzido ali. Ou podem vir nas nossas mãos. Para a nossa cozinha, de próximos. Quando é assim, sabemos que enquanto houver azeite e alhos e orégãos e coentros, podemos tentar a disseminação. O património daquele lugar passará muito por aí. Por vir connosco. Com tudo aquilo que somos. Antes e depois de acontecermos ali. O Vila Lisa está aqui. Em forma de livro. E em forma de comida. A melhor homenagem que posso prestar a um lugar. Integrá-lo na minha comida. Assim destas duas maneiras.

Batatas salteadas em alho e orégãos

2 dentes de alho + 4 batatas vermelhas + azeite, flor de sal, orégãos e vinagre a gosto.

Coze-se as batatas partidas em cubos. Depois, esmaga-se os dois dentes de alhos, conservando parte da casca e leva-se ao lume em azeite abundante, numa frigideira. Quando as batatas estiverem cozidas, junta-se aos alhos e ao azeite e salpica-se com a flor de sal, o vinagre e os orégãos. Integra-se bem as coisas, acrescenta-se mais azeite, se necessário e serve-se de imediato.

Estopeta de atum

1 cebola vermelha + 1 lata de atum + 1 tomate coração-de-boi + azeite, flor de sal, coentros, orégãos e vinagre a gosto.

Corta-se a cebola em rodelas finas, o tomate em pedaços e coloca-se num prato. Por cima, lascas de atum. E no final, os temperos e as ervas. Deixa-se marinar um pouco, antes de dar a servir.

Matéria-prima.





No processo, o mais importante é a matéria-prima. Não acho nada que se consiga transformar maus peixes numa boa refeição. O mesmo acontece com a carne. Com os ovos. Os legumes. As frutas. Uma boa parte do que acontece a partir da matéria é consequência dessa matéria. Esta refeição de Verão em tempo de praia nasceu de um olhar de relance. Havia cebolas acabadas de colher. Com a rama bem fresca. E aquele verde que diz que é para aproveitar tudo. Que quando é assim, a rama da cebola não se elimina. Ao contrário. Aquele verde merecia um encontro com ovos que não ficam brancos e insípidos. E um bocadinho de vermelho de pimento. E queijo da Ilha. Bem rápidas de fazer, estas coisas dos dias aqui. As manhãs são cedo. Começam no mercado, prolongam-se pelas ruas de Lagos. Até chegarem à água. Acabam sempre por ir dar a mais água, os dias. Nos intervalos, o encantamento que não vai de férias: fazer comida. Mesmo que isso motive estranheza. "Assim não tem férias". A resposta é tão como a água. "Não tiro férias do que me faz bem". Interrupções pontuais, sim. Mas não isso de tirar férias de fazer comida. Muito menos aqui. Com esta matéria-prima tão ao alcance.

Omolete de rama de cebola

6 ovos + rama de uma cebola + pimento vermelho, azeite, flor de sal e queijo da Ilha a gosto.

Corta-se a rama e o pimento. Vai ao lume num pouco de azeite e uns salpicos de flor de sal. Deixa-se fazer durante uns três minutos. Entretanto, bate-se os ovos. Junta-se depois ao pimento e à rama de cebola. Deixa-se fazer, até que a base ganhe consistência. Vira-se para um prato e em seguida para a frigideira. Aguarda-se até que fique cozinhada do outro lado e serve-se de imediato. Com queijo da Ilha raspado com aquela pressa:)

E pode acompanhar com esta salada. Tomate + cebola vermelha + rabanetes + queijo da Ilha. Com o tempero clássico: sal, azeite e vinagre.

Chocolate do Sul.



























No Mercado de Lagos, perguntei por alfarroba. Apetecia-me bolo de alfarroba da Pastelaria Vasco da Gama. Acontece que a Pastelaria Vasco da Gama já não existe como a conheci há uns anos. Fazer o quê? Bolo de alfarroba, então. Disseram-me para ir ter com o Sr. Augusto. A banca bem no fundo do segundo andar do mercado. E frutos secos. Farinha de alfarroba. E mel de flor de laranjeira. E uma coisa que nunca tinha provado em tantos anos de Lagos: licor de alfarroba. Quando cheguei a casa, juntei as coisas que tinha trazido comigo como se fossem tesouros. E deu nisto.

Bolo de alfarroba, mel e figos

1 chávena almoçadeira de farinha de alfarroba + 2 chávenas almoçadeiras de farinha + meia chávena almoçadeira de açúcar + 2 colheres de sopa de mel + 6 ovos inteiros + 150 g de manteiga + meio copo de licor de alfarroba + 6 figos (frescos).

O "juntar" é literal: os ovos inteiros, a manteiga derretida, as duas farinhas, o açúcar, o mel e o licor. Bate-se tudo muito bem (até formar bolhinhas) e no fim de tudo, acrescenta-se os figos cortados em pedaços (com a casca e tudo). Vai ao forno durante trinta e cinco minutos.

O "chocolate do Sul". Foi assim que o Sr. Augusto disse da alfarroba. Fica um bolo que não podia ser mais do Sul. Denso. Pouco doce. A acompanhar com licor de alfarroba. Partes finais de refeições que se querem prolongadas.

Sul.



































O Verão pode assumir muitas configurações. Acaba sempre por arranjar maneira de se declinar. Basta muito pouco. Este pouco. Uma salada composta com ingredientes das terras quentes do Sul. Com tomate vermelho-sangue, azeitonas e orégãos. Pão com aquela densidade que permite que assuma o papel principal numa refeição. Os ingredientes são o que é importante. Penso isso muitas vezes. Mas mais aqui. Como se o meu papel fosse absolutamente secundário. Só é preciso ir dispondo as coisas que vieram, trazidas de um mercado muito especial: o de Lagos. E levar tudo à mesa. Como num cerimonial que não perde sentido. Por mais vezes que ocorra.

Para a salada:

1 tomate coração-de-boi + azeitonas a gosto + flor de sal + azeite + orégãos + vinagre de maçã.

Dispor o tomate e as azeitonas num prato e temperar de acordo com esta sequência: flor de sal, azeite, vinagre e os orégãos no final. Acompanhar com fatias de pão. E vinho tinto. E queijo. E o que apetecer no momento.

Salmonetes em fatias de pão alentejano

Salmonetes + cebolinho + 1 tomate coração-de-boi + 1 dente de alho + limão, azeite, sal e coentros.

Coloca-se os salmonetes num tacho largo e tempera-se com um pouco de sal e limão. Reserva-se durante uns minutos. Entretanto, corta-se o tomate e o cebolinho. Coloca-se por cima dos peixes e rega-se tudo com um fio de azeite. Leva-se ao lume durante vinte minutos (virando o peixe a meio do tempo). Acrescenta-se um pouco de água e mais sal, se necessário. No final, mesmo antes de servir, coentros picados. Na altura de levar à mesa, coloca-se uma fatia de pão num prato fundo. E por cima, lascas dos salmonetes com o molho, de maneira a que o pão fique embebido. Serve-se de imediato.

Fica este pouco. A partir da minha versão do Sul.

Amar, não obstante.








Convém dizer isto: não acho que se consiga pacificação vinda de fora. Não naquele entendimento de receituário, pelo menos. Uns dias num mosteiro e fica-se óptimo. Uns dias de retiro e está-se pronto. Nada disso. Parece-me que o processo deve ser sempre interior. O que está de fora dificilmente nos perdoará, se nós não nos perdoarmos. O silêncio de um lugar pode ser ruído, se dentro de nós houver só inquietude. O silêncio. Num convento, o silêncio é diferente. Mais solene. Mais a envolver-nos. Mais a estar em nós. Não sei se consigo dizer bem o silêncio de um convento. Mas acho que posso tentar dizer a paz. De um tamanho impossível de circunscrever. A experiência de ouvirmos bem os nossos passos. De as pedras no chão nos devolverem um bocadinho do caminho que nos fez chegar até ali. Ter o céu como referência. Sem que isso seja uma questão de fé. O céu por estar acima de nós. O céu por ser infinito. O céu com o sol a nascer, silencioso. O céu à noite, com estrelas. Pendentes do nosso olhar. O céu, o sol e as estrelas.
Abaixo do céu, este lugar. Onde a arquitectura integrou bem a ideia do silêncio, da pacificação. A cor a dominar o olhar é o branco. As entradas de luz são generosas onde mais precisamos. E remetem-se ao silêncio, onde necessitamos. Os quartos quase que podiam ser espartanos, de minimalistas. As matérias essenciais. A madeira, a pedra, a lã das mantas, o algodão dos lençóis. E as flores acabadas de colher num dos jardins. Tantas. Fotografadas assim mesmo: no balde onde vieram. Antes de serem compostas num arranjo. Tão a bastarem por si. Tão a acontecerem naquele momento exacto em que o meu olhar coincidiu com elas.
As memórias compõem-se de mecanismos nem sempre explicáveis. Mas determinam uma coisa muito simples: voltar ou não. Sim. Muito. Mais vezes. Lembrei-me que queria ouvir chover naquele lugar. Ocorreu-me que um dia hei-de querer voltar num dia de chuva. E rever. O lugar. E os rostos que são aquele lugar. Faces visíveis de um divino à medida das nossas imperfeições. O sagrado passará muito por isso. Por amarmos, não obstante. No meio do silêncio todo, houve também essa noção. Amar, não obstante. No Convento de Tibães. E nos lugares todos que quisermos.

Centésima Página.






Uma cidade deve ter (pelo menos) uma livraria. Livraria mesmo. Com uma porta a dar para a rua. Um lugar a que se chegue depois de termos passado pelos elementos. Chuva ou calor. Vento ou brisa. Quando é assim, a memória de uma cidade será indissociável do lugar onde, silenciosos, percorremos estantes sucessivas. Sempre que evoco Braga, vem a Centésima Página com a cidade toda. Pelo tácito. E por coisas que só são daquele lugar. Os pigmentos ocre das paredes. A possibilidade de parar para ler. Dentro, no meio dos livros. Fora, a respirar melhor as páginas de um livro acabado de comprar. A sensação é a que acontece com os livros: liberdade. Deambulamos. Paramos num sofá, à luz cálida de um candeeiro. Apetece tomar café sem mais. Existir demoradamente. Respirar por entre o que se vê. O que se lê. Dificilmente se compra livros por inércia. Tudo ali remete para o respeito fundamental pela palavra escrita. 
Fui sempre feliz aqui. De todas as vezes. Queria deixar a Centésima Página nestas páginas. Por todas as páginas que me vieram dali.

Arco-íris. Portas de entrada. E uma história.







Uma cidade em nós nunca é a mesma. Por mais que voltemos a lugares que já nos viram, nunca é a mesma coisa. Aquilo de se colocar cruzes sucessivas nos mapas individuais que vamos desenhando. "Já fiz." "Já estive lá." "Já provei." "Já vi." Não é assim. A começar por aquilo que levamos connosco a cada um dos lugares que já nos viram noutras circunstâncias. E o nosso olhar, formatado por aquilo que somos naquele instante irrepetível que nos acolhe como se nunca ali tivéssemos acontecido.
Desta vez aconteceu reparar nas portas das casas de Braga. Especificamente nas casas com azulejos. Tão bonitos. Tão complexos, na aparente simplicidade e repetição de padrões e de cores. Representações de um infinito monogramático. Tentamos o infinito de todas as maneiras. Mesmo que nem demos por isso. Mesmo que o conceito nem sequer faça parte do nosso vocabulário, de abstracto. Como os arco-íris. Abstracções às cores. A água a desencadear a hipótese de um arco-íris mesmo ali, ao alcance das mãos. Nada como nas histórias de quando somos pequenos. Que no fim do arco-íris vive a possibilidade de não sei o quê que nos há-de fazer felizes. E o meu olhar dividido entre o arco-íris e a contemplação carinhosa da angústia. Uma mulher de cabelos pretos, compridos. Os lábios pintados de vermelho. Primeiro sentada numa esplanada. Depois em pé, a olhar o horizonte de onde não vinha ninguém. Depois sentada outra vez. Mas num muro. A olhar o telemóvel. Depois em pé. A andar de um lado para o outro. O vermelho vivo dos lábios a perder cor. E os olhos tristes. Depois foi embora. Sozinha. O mundo não é simples. Mas de vez em quando, era bom que assim fosse. Se sim, ela não teria de ter estado à espera. Se sim, mesmo que tivesse esperado um bocadinho, ele teria vindo. E iam embora os dois. A abrir caminho por entre a cidade de granito. Braga é muito assim. Voltemos lá as vezes que quisermos. O granito será sempre o elemento persistente.

Conspiração.




De vez em quando, aquele esmorecer. De vez em quando, o persistente de pensar que não adianta. Que não faz diferença nenhuma. Que o melhor mesmo é estar-se quieto e pronto. Permitir que a vida vá acontecendo sem que se tenha uma palavra a dizer. Ou sem que as palavras se transformem em coisas. De vez em quando, aquele não saber. Só esse não saber. Se sim. Se não. E vontade de resguardo. De estar a salvo do que lá fora estilhaça.
De todas as vezes, uma espécie de conspiração. Tanta, desta vez. Tanta. A suceder-se, de inequívoca. Como se fossem sussurros. Como se o universo tangível dissesse que não era por ali. Que sim. Que até adianta(mos). Que sim. Que é melhor fazer e dizer coisas. E se correr mal, logo se vê. Quebra-se um bocadinho. Mas arranja-se maneira de preserverar.
Os dias difíceis e silenciosos terminaram assim. Com uma sucessão de coisas que foram muito. Que fizeram com que esmorecer não fosse possibilidade. Não agora, pelo menos. E foi assim. Com coisas destas. Coisas da terra surgidas do inesperado. Manifestações carinhosas. "Sabemos que gosta", dizia a voz a que abri a porta. E sim. Muito. Tanto, no dia em que aconteceram. Sem saber, uma diferença enorme, que uma pessoa fez. Acaba por ser isso que as pessoas mais fazem. Diferença nas vidas umas das outras. Isto fica aqui para não me esquecer de um dia em que estive quase a deixar ir. Por ter pensado que não adiantava nada. Guardada agora, a conspiração breve do meu universo próximo. E a minha gratidão.

PS: Obrigada aos "conspiradores".

AddThis