Graça.







Um jantar. Uma mesa. As flores que vieram parar aos meus braços. Velas. Muitas. Pontos de luz espalhados pelo jardim. Tudo a querer agradecer. Tudo a querer ser uma homenagem possível. Aos que há uns meses foram isso mesmo: uma homenagem a alguém que lhes persistiu na memória. Uma espécie de reacção em cadeia, estas coisas. Sucedem-se umas às outras. Um gesto há-de motivar outro gesto. De uma palavra nascerá outra. Um momento pode arranjar sempre hipótese de fazer acontecer outro. Repercussão grata do que nas nossas vidas é dádiva. Quando é assim, temos mesmo de fazer alguma coisa. Eu fiz aquilo que é à minha medida. Pensei numa ementa. A seguir, os passos para que saísse do pensamento e fosse real e efémera. Depois numa mesa. Na maneira como as coisas se conjugariam. Tal como acontece nos nossos percursos. Peças a conjugar-se. Puzzles inacabados, que somos. Nunca sabemos bem. Como ou quem ou o quê. Mas quando as pessoas (nos) acontecem assim, o imperativo é procurar ser digno.
E então, a memória deste jantar será sempre iluminada. Por tudo aquilo que nos outros é sublime. E nos faz querer ser merecedores. Da graça de nos terem acontecido.

Céus.





























Um hábito. Dedicar atenção aos céus. Penso sempre que nunca são os mesmos. E não. O céu de hoje é um céu que nunca existiu. E sem hipótese de reedição. Tal como os céus muito azuis das imagens. Aconteceram. Guardei-os. Guardo sempre os céus dos sítios. À falta de melhor, ficam na memória. Mas quando dá para registar, ficam mais. E posso olhá-los as vezes que quiser. Gosto quando há aviões. Por pensar nas pessoas dentro. Nos sítios de onde vêm. Para onde vão. Tanto, nisso. As expectativas que terão, se estiverem a ir. O que terá ficado nelas dos chãos que pisaram, se estiverem a regressar. E parece tudo tão mais pequeno. Tão mais relativo, visto de lá de cima. Nós e as nossas questões. Nós e os nossos medos. Nós e os nossos desejos nem sempre materializados.
Os dois primeiros céus aconteceram num lugar designável. Sky Bar. Apropriada, a designação. A probabilidade de céu azul no último andar do Tivoli da Avenida da Liberdade. Ali, o que há mais é mesmo isso. Céu. Muito. O azul que quisermos. Não me lembro assim muito bem das outras coisas que havia neste lugar. Só me lembro do céu todo que ali estava. E de como parecia perto.

Ilha.





























Este lugar foi uma ilha. Tempo concedido. Depois de deixar outro em suspenso. Parar. Respirar. Olhar para o mundo a acontecer. Comida devagar. Beber lento de vinho tinto. Um último olhar. Respirar. Antes de voltar para o que tinha ficado em suspenso.
Assim como ir jantar a casa de alguém que nos conhece bem. Integrei-o assim. Comida que sabe a uma casa que se conhece há muito. Nada de coisas a quererem ser diferentes do que são. Nada de designações encrípticas na ementa. Nada de presenças demasiado zelosas. Peixinhos da horta querem mesmo dizer peixinhos da horta. Arroz de tomate com coentros quer mesmo dizer arroz de tomate com coentros. E açorda. Tinha de ser. Por algum motivo se chama Pap'açorda, o lugar que foi a possibilidade de uma ilha. A açorda perfumada. Persistente, na memória. Era acompanhamento, mas eu entendi-a como prato principal. Comida só com o garfo. E um copo de vinho. Comida simples é assim. Retempera. Reconcilia-nos com o que à volta corre frenético, sem tempo. Depois, voltar ao que tinha ficado à espera. E com mais. Voltar mais ao que esperava. Fica na Rua da Atalaia, esta ilha. E creio que quando se aprende este caminho, nunca se esquece. Por se querer voltar. Uma e outra vez.

Voltar.





























Ali, o mais importante é o jardim. E a água. Vontade de água. Água à noite. Ou muito cedo, de manhã. É assim que se ouve melhor a água. De manhã, antes de todos acordarem. Ou à noite, quando todos dormem.
A sensação é a mesma de sempre. Mas com coisas diferentes. Em camadas. Todas as coisas entre esta e a última vez que estive ali. O jardim mais bonito. Quase como se não precisasse de ver os outros jardins todos. De vez em quando, é como se o soubesse de olhos fechados. Os hibiscos. Muito vermelhos, alguns. Rosa desmaiado, nos caminhos mais escondidos. O pavilhão chinês a ver as árvores e a água. Lá dentro, silêncio. Uma jarra de chá muito fresco. Livros soltos. À solta. Prestes a fazerem parte da vida de alguém que não era suposto. E todos os caminhos vão dar à água. Os caminhos que os nossos pés trilham. E os outros, os do olhar.
Continua a ser o que foi desde a primeira vez que soube que havia este jardim na cidade da luz que é mais luz. Manteve-se imperturbável na minha memória. Aceitou pacificamente que eu até fosse para outros lugares. Sabia que eu iria voltar, o jardim do Pestana Palace. E havia música. Esta.

Como no Verão.




A sensação de dar início é irrepetível. Sempre, aquela antecipação. Não se sabe bem o que vai acontecer. Até pode haver a previsão possível. Uma ementa. Uma verbalização qualquer. Mais ou menos descritiva. Mais ou menos elíptica. Mas não se sabe o que se vai sentir. Nem como vai ser sentida, a refeição a que se dá início. Que os prelúdios sejam leves. Que não sejam elementos perturbadores. Abrem caminho. Dão coordenadas. Indicadores etéreos do que se segue.
O Verão pede coisas destas. As refeições de Verão querem muito começar com comida assim.

Folhados de mozzarella, cebolinho e nozes

Folhas de massa brick + queijo mozzarella fresco + azeite + nozes picadas e cebolinho fresco a gosto.

Parte-se o queijo mozzarella em cubos. Distribui-se por quadrados de massa do mesmo tamanho. Depois, as nozes, o cebolinho picado e um fio de azeite. "Embrulha-se" tudo. E vai ao forno dez minutos ou o tempo suficiente para que a massa fique dourada.
Rápido, este tempo. Para que o outro possa demorar o tempo que nos apetecer. Como sabe bem, (n)o Verão.

Do luto impossível.

Não concebo dor maior. Desaparecer-nos um filho. Acordarmos todos os dias e sabermos que não está. Que o nosso filho não está. E que não sabemos onde. Nem com quem. Mas que temos de acordar ainda assim. Que temos de fazer as coisas que as pessoas fazem. Todas as coisas que fazem os que podem despedir-se dos filhos à noite e dizer até amanhã. As coisas mais normais de todas. Esmagadoras, na sua normalidade. Acordar. Tomar banho. Comer para não morrer. Todos os dias adiados. Contados até ao mais infinitesimal dos segundos. A tortura do tempo que não traz nada. Mas que pode trazer. Um dia pode ser que sim. A única coisa que adiará a morte será a possibilidade de um dia aparecer. E ter de estar à espera em nome dessa possibilidade ser razão suficiente para continuar. À espera.
As coisas que escrevo têm um rosto. Mesmo que não haja fotografia a ilustrar o texto. Mas o rosto dela é o de todas as mães a quem desapareceu um filho. Mais, o rosto de todas as mães a quem pode desaparecer um filho. Pode acontecer a qualquer momento. O mal vive aí. Bem perto, muitas vezes. A possibilidade do terrível é como todas as possibilidades: pendente sobre as nossas existências. A mãe de um menino que desapareceu no dia 4 de Março de 1998, depois de perguntar se podia ir andar de bicicleta. Depois de ela dizer que sim. Tão simples quanto isto. E depois, a devastação. Depois o não saber. Não saber é infinito. Não cessa, como a morte. A morte é definitiva, inapelável. Faz-se um luto. Chora-se sempre. Mas sabe-se que não há nada a fazer. Que não há por onde procurar. Que alguém esteve mas deixou de estar. Desaparecer não é assim. Desaparecer é ter estado mas não se saber se continua a estar. A impossibilidade do luto. A impossibilidade de deixar de procurar. De insistir. De fazer as mesmas perguntas uma e outra vez. Ir aos mesmos sítios uma e outra vez. Chorar uma e outra vez. Gritar e desesperar. Deixar de comer por não conseguir. Onde, a felicidade? Como, a felicidade? Como é que alguma coisa pode voltar a saber-nos bem, se o nosso filho pode estar não se sabe onde? Se no exacto momento em que se desenha um sorriso ténue no nosso rosto, ele pode estar a ser violentado ou agredido? E se? Todos os dias isso de não saber.

Pensei muito antes de decidir escrever a este propósito. Mas ficou claro que tinha de ser. Por ser em nome de uma causa maior do que eu e os meus estados de alma relativamente à instrumentalização de um espaço deste género. É de um apelo, que se trata. Que passo a explicar. Sou sócia da Associação Portuguesa de Crianças Desaparecidas (APCD). Uma ONG fundada pelos pais do Rui Pedro e que se dedica a prestar auxílio a famílias a quem acontece o mal maior. Esse auxílio declina-se de muitas formas.Todas elas muito concretas. Todas elas muito necessárias. Só que o necessário e o concreto precisam de dinheiro. É isso. A APCD precisa de fundos para continuar. Cada uma das pessoas associadas contribui anualmente com 30 euros. E isso, só por si, pode fazer uma diferença enorme. São tempos difíceis, os nossos. Muito. Mas uma das coisas que o difícil traz consigo é sentirmos que a solução passa sempre por estarmos mais juntos. E ajudarmos, se, quando e como pudermos.

Fica o link para o site. As instruções para saber como ajudar estão lá. E todas as informações necessárias para perceber o âmbito da associação e das acções que desenvolve gratuitamente.

http://www.ap-cd.pt/

Perto, o céu.



























Julho já está a ser. Está assim, o céu de Julho. Azul. De vez em quando, o rasto de um ou outro avião. Rastos a ir. Outros a regressar. Rastos.
Fiz isto, para Julho. Uma conjugação entre a densidade do chocolate e a frescura ligeiramente ácida das limas. Pedaços tangíveis de felicidade. Senti assim, quando foi servido. Que cada um dos pedaços breves estava a ser uma felicidade possível. E gostei silenciosamente do tempo que levei a fazer este doce. Tinha feito coisas boas com o meu tempo de vida. As pessoas à minha mesa estavam bem. E um bocadinho silenciosas, nos primeiros segundos. Olhar um bocadinho os rostos e perceber que afinal até que é fácil. E que não havia sítio melhor. Circunstância mais feliz do que aquela. O momento breve em que um pedaço de chocolate com aroma leve a lima fresca faz com que seja possível nada sobrar. Por nada estar a mais ou a menos. Imperturbável. O momento. E o doce.

Cheese cake de chocolate e lima

Para a base:
1 pacote de bolachas digestivas + 100 g de manteiga + 1 colher (de sopa) de chocolate em pó + leite q.b.

Tritura-se as bolachas e junta-se-lhes a manteiga derretida. A colher de chocolate em pó e o leite suficiente para tornar a base firme. Forra-se o fundo de uma forma quadrada com base amovível e pressiona-se. Leva-se ao congelador.

Para o creme:

1 lata (mal cheia) de leite condensado + 1 pacote de natas + 1 tablete de chocolate para culinária + 2 folhas de gelatina branca + 1 embalagem de queijo-creme + raspa e sumo de uma lima

Derrete-se o chocolate juntamente com o leite condensado em banho-maria. Bate-se as natas e reserva-se. Entretanto, hidrata-se as folhas de gelatina em água fria durante um minuto. Escorre-se e junta-se à mistura de chocolate, assim que estiver bem harmonizado com o leite condensado. Depois, o queijo-creme (envolvido no chocolate com a batedeira em velocidade mínima). Antes de juntar tudo às natas batidas, a raspa e o sumo da lima. Coloca-se por cima da base de bolachas e leva-se ao frio até solidificar.

No momento de servir, o detalhe de mais raspas verdes e muito frescas de lima. Como se um bocadinho de céu fosse aqui, depois desse detalhe. Como se fosse perto e não precisássemos de aviões. Ou de céus longe.


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