Mousse de damascos.





























O mês está no último dia. Quando acordarmos, um dado diferente. Junho. Para amanhã. Quando o mundo acordar em Junho, uma mousse que sabe a um doce que mitiga os dias quentes que vêm por aí. Feita com damascos. E ainda com a luz de Maio.

Mousse de damascos

1 lata de damascos em calda (250 g) + metade de uma lata de leite condensado + 1 folha de gelatina branca + 1 pacote de natas

Escorre-se os damascos e passa-se com a varinha mágica. Reserva-se. Aquece-se o leite condensado em banho-maria e hidrata-se a folha de gelatina em água bem fria. Quando o leite condensado estiver quente, integra-se a folha de gelatina. Junta-se aos damascos. Entretanto, bate-se muito bem as natas e depois adiciona-se a mistura anterior. Vai ao frigorífico até ficar bem fresca. Ou ao congelador. Se tivermos (mesmo) muita pressa.

NB: Sou avessa a referências que ultrapassem as óbvias, mas é só para dizer que os damascos em calda se encontram no supermercado do El Corte Inglès.

Incidente de recusa.




























Com um bocadinho de tempo e as coisas encontrarão lugar. Tem andado tudo muito depressa. O mundo. O mundo é que anda muito depressa. Difícil de acompanhar. Quase não dá para entender muito bem. Imagino as perplexidades todas, antes deste tempo que caminha em passo apressado. Ainda assim, era capaz de ser um bocadinho menos complexo. A sensação é a de adormecermos a saber umas coisas. A contar com outras. E depois não. A sensação é a de ouvirmos uma coisa enquanto almoçamos a caminho do resto do dia, a esperar por favor que à hora de jantar alguma coisa tenha permanecido quieta um bocadinho. Raramente é assim. Aquilo que um tribunal diz ser de uma maneira e não poder ser de outra, afinal não é bem assim. Pode ser passível de um recurso qualquer, de um incidente de recusa obscuro. E um senhor com ar sério pode dizer que não conhece bem o senhor de aspecto sinistro que andou a fazer pela vida. Mas a seguir, o que vem sempre a seguir. Diálogos surdos e em diferido. Comissões que justificam a existência de pessoas que também andarão a fazer pela vida. Audiências. Comentários. Recados. Declarações. E mais palavras que não significam nenhuma das entradas dos dicionários. Plásticas. Moldáveis. Pena não ser como nos tribunais. Pena não poder dar para um ou outro incidente de recusa. Dava jeito.
Um livro deixa isto tudo lá para trás. Um livro faz-nos estar muito quietos no lugar onde escolhermos estar muito quietos. Um livro sobre a morte que nos diz que não é para ter medo na capa. A ver se lá dentro se chega à mesma conclusão. Seja o que for que isso signifique. Talvez signifique coisas diferentes para cada um. Estará certo, isso.
Também ajuda isto. Fazer um bolo salgado para aqueles minutos de antes de jantar. Com um livro por perto. Para nos lembrarmos do que realmente importa. Sermos capazes de fazer comida que nos faz bem e aos outros. E do silêncio que só acontece assim. A ler um livro que interpela sem fazer barulho.

Bolo salgado de aipo e alho francês

2 talos de aipo + 2 alhos franceses + 10 azeitonas pretas + 5 ovos + 200 g de farinha + 100 ml de leite + sal, azeite, pimenta preta e queijo parmesão ralado q.b.

Faz-se um refogado com o aipo, o alho francês e as azeitonas (picadas). Leva-se ao lume em azeite e ligeiramente salpicado com sal e um pouco de pimenta. Basta 10 minutos para esta parte. Reserva-se. Entretanto, bate-se os ovos com a farinha, o leite, um pouco de sal e pimenta. Quando houver bolhinhas, acrescenta-se os legumes e o parmesão ralado. Integra-se com uma colher e leva-se ao forno durante uns vinte minutos.
Assim que estiver pronto, corta-se em quadrados. E a seguir, distribui-se felicidade tangível. Ou de comer. Felicidade que se come cortada aos pedaços.  Sem nada de incidentes de recusa.

Hideaway







De vez em quando, somos como as crianças. Precisamos de esconderijos. De refúgios. Lugares onde estarmos longe sem nos perdermos. Enquanto o mundo acontece. Enquanto se faz a análise silenciosa e possível do mundo que não pára de acontecer. Sempre houve um lugar desses. Declinações de um mesmo lugar interior. Em cada um desses refúgios, verde. Árvores a chegar ao céu. Vegetação densa. Eu conseguia ouvir os outros a chamar. E ninguém conseguia ver-me. Nesta parte do jardim, tenho existido a sós. Há uns dias, sonhei com uma mesa neste lugar. A primeira vez que o imaginei com pessoas. No dia seguinte, a persistência de um sonho obedeceu a gestos que o fizeram acontecer. Fica o registo. 

Chloé.




























Uma pedra pode ser uma pessoa. Mesmo que a pessoa já não exista. Com tudo o que isso encerra de nunca mais. A questão é que permanece. É como se nunca mais pudesse morrer, no fundo. Vida feita mármore branco. Pelo rosto, pelo desenho dos ombros, um nome inventado. Chloé. Uma sílaba de mármore branco. Linda, ela. Pertence à galeria, agora. Uma daquelas coisas fulminantes de primeiro olhar. Do olhar que ama as pedras desde que se entende. Nada de ciúmes. Nada de a ter como rival. Não possuímos ninguém. Não possuímos nada. Nem mesmo as pedras. Mas tinha de vir para aqui. Como se aqui tivesse vivido antes de ser pedra. Cenário de uma refeição breve de final de tarde. Dizem que estas coisas de final de tarde ficam bem com vinho branco muito fresco. Eu gosto assim. De coisas destas de final de tarde com vinho tinto. A antecipar jantares em dias de calor.

Tarte de alho francês e bacalhau

1 posta média de bacalhau + 1 embalagem de massa quebrada + 2 alhos franceses + metade de um pimento vermelho + 1 pacote de natas + 1 gema de ovo + sal, pimenta, salsa e azeite q.b.

Coze-se a posta de bacalhau (se for congelada, desliga-se o lume assim que ferver a água e deixa-se estar dez minutos). Reserva-se, depois de se desfazer em lascas. Faz-se o refogado com os alhos franceses cortados em rodelas finas, o pimento e o azeite. Um pouco de sal e pimenta e depois o bacalhau. Nesse momento, desfaz-se ainda mais, com a ajuda de uma colher de pau. Junta-se depois as natas e quase logo a seguir, a gema de ovo. Integra-se tudo muito bem e rectifica-se os temperos. Verte-se a mistura na massa quebrada (previamente picada com um garfo) e salpica-se com salsa. Vai ao forno durante 20 minutos.

Com a tarte que se faz como se disséssemos um nome que é uma sílaba, ela. Chloé.

Colo.





























De vez em quando é ao contrário. São as mães que precisam de colo. Foi isso. Por estes dias de silêncio, a minha mãe precisou de colo. Irreparável, o que fez com que se desse esta inversão de papéis. Ainda assim, há sempre hipóteses de fazer com que se consiga olhar em frente. Sou do género de acreditar em coisas dessas. Uma mesa faz com que se consiga olhar para a frente. Ou a comida que se faz para pôr na mesa. Um copo de vinho também consegue essa melodia. À vida que continua, o brinde.

Para a minha mãe que precisa de colo.

"Se puderes olhar, vê. Se podes ver, repara."



Acabamos todos por fazer diferença nas vidas dos outros. Há graus para isso. Podemos ser uma diferença ínfima, quase imperceptível. Há aqueles que se assinalam muito. São aqueles que mudam trajectórias. Vidas inteiras. Essas são as grandes diferenças. As ostensivas, declarativas. Ou não. De tão significativas, também acontece terem de ser caladas. Queria falar das diferenças pequenas. A propósito de uma pessoa. O senhor Gil. Durante muito tempo, o senhor Gil não teve nome para mim. Era só uma figura que me acenava todos os dias, quando passava de carro. O “senhor do adeus” daqui. Como o “senhor do adeus” de Lisboa. Tinha o mesmo ofício, esse senhor. Todos os dias acenava aos carros, na zona do Saldanha. Julgo que o senhor Gil nunca terá ouvido falar do senhor João Serra. O que faz com que o gesto dele seja ainda mais dádiva, mais poesia. Só por um acenar. Trata-se disso. Levantar um dos braços e acompanhar esse movimento de um sorriso. Muito provavelmente, não se pensa muito nos reflexos destas coisas ínfimas. A pressa é tanta, todos os dias. Ainda por cima, é mesmo uma daquelas coisas quotidianas. Mesmo perto do nosso olhar. Como de costume, olhamos mais depressa para as coisas que nos parecem raras. Difíceis. Ou até mesmo inalcançáveis. Equações diárias, essas. Nem sempre conseguimos resolvê-las. Nem sempre queremos sequer tentar a resolução. E eu também não sei a fórmula. Mas sei isto: a minha vida quotidiana seria bem diferente se o senhor Gil não existisse aqui. Que sei que o dia começa a sério, quando o vejo a dizer bom dia com um gesto. E que terminou quando está à espera. Os carros vão passando. E ele diz adeus. Como se dissesse sem palavras que quer que voltemos no dia seguinte. Que estará à nossa espera. E que fará exactamente aquilo que esperamos dele: que diga adeus. Mesmo que chova muito. E que faça vento. Ou calor, quando é quase Verão e o sol é uma espécie de castigo. Ainda assim, está. E isso faz uma diferença enorme. Poesia muito limpa, a da vida do senhor Gil. Oferece-nos poesia todos os dias.
Quando é assim, é melhor nem querermos respostas para perguntas que nos parecem inevitáveis. Para quê? Ou porquê? Por que é que o senhor Gil nos acena todos os dias? Porque sim. Só por isso. É que o gesto do senhor Gil é bem capaz de ser como os poemas. E não servir para nada. Bom que assim seja, que o mundo é tão pragmático. Melhor que fosse mais poesia. As coisas haviam de ser um bocadinho melhores. Ou menos difíceis, no limite.
Só para dizer obrigada. Por todos os dias. Porque a diferença fundamental são as pessoas. Que fazem da nossa vida o melhor dos lugares. Mesmo nos dias que custam um bocadinho. Ou principalmente nesses. A diferença ínfima pode ser essa. E isso ser grande. Por isto: fazer de um lugar um sítio melhor é uma coisa muito grande. Só para dizer isso. E para deixar música que diz que é para abrirmos os olhos.

NB: O título pertence ao "Ensaio sobre a cegueira" de José Saramago. Uma daquelas formulações que é um livro inteiro.

Espera.






























Enquanto nascia a mesa, o pensamento num nascimento a haver. A mesa do dia que é das mães, é para uma mãe em especial. Que espera ainda. Está à espera do rosto. Das mãos muito pequeninas. Dos olhinhos fechados à procura da mãe. Não é para dizer das minhas coisas. É para deixar uma mesa que é assim como uma nuvem. Com flores brancas que parecem suspensas. Rosas com pétalas cheias de vida cor-de-rosa. E uma casa branca. As mães podem ser estas coisas todas juntas. E todas as que não se consegue dizer. Para a mãe que espera, então. O meu carinho em forma de mesa.

Premeditação.





Absolutamente premeditado. Calculado. Pensado. Objecto de gestos ponderados. Primeiro escolher o dia certo. Depois, escolher tomate bem verde. A seguir, fazer coisas de um dia para o outro. Aparentemente destituído de impulso, o doce de tomate verde feito hoje. Dias assim pedem coisas assim. Doces feitos com tempo. Vigiados com atenção doce. Para ficarem bem. No ponto que queremos e que há-de fazer bem.
Um recurso precioso, este doce. Para lanches. Para ir comendo com bolachas muito leves. Ou para sobremesa, sobre lascas de parmesão. Receita da Maria de Lourdes Modesto. Ligeiramente adaptada. Mas a vir dela. De uma página guardada há anos, retirada das folhas do Diário de Notícias. Quando havia receitas dela, lá. Acrescentadas de coisas pequenas que nós sabemos que fazem uma grande diferença, nisto de fazer comida. Fazem falta, as receitas dela em páginas feitas da espuma dos dias.
Um doce vindo de uma das minhas maiores referências. A Maria de Lourdes Modesto. Para a Babette. Que me pediu que o fizesse. Assim: "Vê lá se fazes o tal doce!" Hoje. Fiz hoje.

Doce de tomate verde

2 quilos de tomate verde + 1,5 quilo de açúcar + 1 limão

De véspera, corta-se o tomate e o limão em rodelas bem finas. Deixa-se a macerar no frio, em camadas alternadas de tomate, limão e açúcar. No dia seguinte, leva-se ao lume até formar ponto de estrada. A minha adaptação da receita original é esta: quando o doce está quase pronto, retiro as rodelas de limão e reservo. Depois, passo a varinha mágica (sem ser continuamente). No fim, devolvo as rodelas de limão ao doce. Apercebi-me de que fica melhor assim, a consistência.

Depois deste ritual, outro. O de colocar em frascos. Colheres de felicidade em tons de verde. Dentro de frascos. Reservas possíveis de felicidade. Premeditadas, estas.

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