Acontece-me muito. Ser objecto de descodificações mais ou menos apressadas. Mais ou menos injustas. O grau varia, mas a essência é quase sempre a mesma. Para todos os efeitos, no imaginário das pessoas, há incompatibilidades que motivam as tais descodificações cheias de pressa de categorizar as coisas. Faz parte. E então, em certos domínios, a hermenêutica ainda é mais impiedosa. Como nas bancas de peixe onde não me conhecem. Neste caso, a propósito da pescada fresca que se transformou numa sopa e numa refeição delicada. A pergunta meio irónica e um bocadinho retórica: "A menina não vai levar a cabeça da pescada, pois não?" Até que percebo. A senhora via o que estava à frente dos olhos dela. Só isso. Uma mulher vestida de negro, com um colar de pérolas e uns sapatos muito altos. A segurar uma carteira que é como eu costumo dizer: aprumada. Não faz mal. O contexto pedia outra indumentária. Um outro uniforme, muito possivelmente. Acontece que a menina sabe que se pode fazer muitas coisas com uma cabeça de pescada. Acontece que a menina sabe que pode servir de base para um caldo de peixe delicioso. E que depois, até pode acontecer uma sopa. Uma sopa assim como esta.
Sopa de espigos com caldo de pescada
Para o caldo de peixe:
1 cabeça de pescada + 1 litro de água + 1 talo de aipo + sal e um fio de azeite.
É simples: tudo ao lume. Quando começar a ferver, abre-se ligeiramente a tampa da panela e reduz-se o lume. Deixa-se estar assim durante dez minutos e desliga-se. Reserva-se a cabeça da pescada e filtra-se o caldo, depois de se retirar o aipo.
Para o creme:
1 cebola + 5 cenouras + 2 courgettes (sem a casca) + 2 batatas + 1 litro de caldo de peixe + 6 pontas de espigos bem frescos (sem abdicar das folhas) + sal e azeite q.b.
A cebola com o azeite durante um minuto. Gradualmente, adiciona-se os outros legumes. E um bocadinho mais de azeite. Depois, junta-se o caldo de peixe até cobrir tudo. Um pouco de sal e fecha-se a tampa da panela. Quando começar a ferver, reduz-se o lume e deixa-se cozer durante vinte minutos. Entretanto, vai-se retirando tudo o que houver para aproveitar da cabeça da pescada, retirando todas as espinhas. Depois, corta-se os espigos grosseiramente. Reserva-se as duas coisas. Quando os legumes estiverem cozidos, passa-se com a varinha mágica até ser um creme irresistível. No final, basta juntar o peixe e as pontas de espigos, rectificar os temperos e esperar dez minutos, até que fique tudo integrado.
E é irremediável, agora. Sempre que olhar para este post, hei-de lembrar a minha senhora da pergunta irónica:) E sorrir um bocadinho e tudo. Ainda assim, tive saudades das minhas pessoas do Mercado de Lagos. Lá em baixo, não é preciso desconstruir nada. Já sabem que a menina sabe umas coisas. Mesmo que não saiba muitas outras. A parte boa destas coisas é pensar no tanto que falta aprender. No caminho que dista entre nós e as coisas todas que não sabemos.