Alegria.





























Aquela alegria. Só por isto. Só por haver aletria. Deixei cair o "t". Invoquei um "g". E deu assim. Em alegria. A do meu filho. E dos braços dele à minha volta. Estava feliz, ele. Penso sempre que é mesmo o melhor que lhe posso dar. Alegria. Por fazer aletria. Ou as outras coisas pequenas e imperceptíveis que as mães dão aos filhos. As que eles pedem. As que eles nem adivinham. E até mesmo as que não querem mesmo nada. Mas que são necessárias.
Esta versão de aletria é de uma mãe. Tem laranja. E implica devoção. O resultado é este. Alegria.
Veio da mãe da Guida, a receita. E está aqui.

PS: Obrigada à Guida. E à mãe da Guida. Pela alegria que veio com a aletria.  

Perto. Mas tão longe.






Nem sei bem como dizer. Talvez porque aquilo que se sente num lugar destes não é só textual. É mais de contemplação silenciosa das coisas que há. E das que levamos connosco. Como se fosse um altar onde vamos deixar o que precisamos de confiar a mãos invisíveis. A minha vontade maior era mesmo a de muito silêncio. A de estar num sítio onde pudesse escolher não interagir. Não estar. Não dizer nada. E foi assim. Foi muito assim. É o mais imperativo, num mosteiro. O silêncio. Horas disso. Horas em que pensei só que o mundo podia esperar um bocadinho. E que nem sequer daria pela minha falta nem nada. Bom assim. Que as coisas estejam nos lugares devidos.
Quando voltar a este texto e a estas imagens, hei-de lembrar-me da ausência de ruído, de perturbação. De uma noite fora do mundo. Mas estranhamente perto. Muito perto dos lugares que habito todos os dias. E a sensação persistente de que afinal não. Tinha partido de viagem para um lugar muito longe. Indizível. Difícil de categorizar. Ou de situar. É assim, a geografia que cada um de nós vai elaborando.
Nesse mapa interior, fica este lugar. O Mosteiro de São Cristóvão de Lafões. Com árvores e água por todo o lado. Pedras que existem ali desde o século XII. Pedras que já viram muito. Os monges silenciosos. Os homens que expulsaram os monges silenciosos. As ervas que invadiram tudo, durante anos. A reconstrução lenta e paciente. Como se esse facto objectivo pudesse justificar uma existência toda.
Andei pelos claustros deste lugar. Pisei as pedras e toquei nas paredes. Fui à igreja vazia. Olhei as inscrições nos túmulos. Pessoas que já não estão há tanto tempo. Pessoas que foram um nome. E uma história irrepetível. Ali. Já não estão. Lembro-me muito dessa noção, quando ali fui pela primeira vez. A de me ter demorado a olhar as inscrições nos túmulos. Tão pequena, na altura. Creio que terá sido por aí que me apercebi do irredutível que é a sequência a que estamos sujeitos. Termina ali. Com uma inscrição breve. Os nossos nomes. Duas datas. A do início. E a do fim. Depois disso, as saudades dos que ficam para trás. E sermos lembrados aniversariamente.
De vez em quando, há-de ser assim. Sempre que a vontade seja a de silêncio. Um saco de viagem muito breve. E treze quilómetros depois, o silêncio ampliado de uns claustros sem ninguém. Para nos sentirmos ninguém. Fundamental, esse exercício. Sentirmo-nos nada. Ninguém. Assim, quando voltarmos para o mundo, vamos esvaziados de nós. Voluntariamente reduzidos. Mas ainda assim, mais fortes. Por sabermos que tudo passa. Mesmo nós. Por mais que isso pareça uma invenção. Demasiado cruel para ser verdade. Enquanto não, uma possibilidade para a transcendência, este lugar. Tão perto. E onde nos sentimos tão longe.

Para o Vasco. Que sabe porquê.

No dia de todos os poemas possíveis.







































Está por todo o lado. É indisciplinada. Escorre-nos das mãos. Pode estar numa parede. No chão que pisamos. Ou suspensa nos ramos de uma árvore. E em nós. Muito em nós. Por sermos versos, se calhar. Pode ser isto tudo, a poesia. E tudo o mais que ainda não foi dito. Todos os versos a haver.
Não é que eu ache bem que as paredes sejam para registar o que quisermos. Mas quando é assim. Quando se adivinha poesia no gesto subversivo que deu origem às mensagens. Quando é assim, acho que só sou capaz da comoção. Ou no limite, do registo. Das tais mensagens. Que podem ser mais ou menos óbvias. Mais ou menos encrípticas. Ainda assim, são palavras. E seja onde for que elas aconteçam, as palavras são as pessoas que as escreveram ou disseram.
Fica a poesia dos outros. A que encontrei pelas ruas. E muito a poesia dos meus alunos. Nos ramos de uma árvore. Cada um deles foi um verso. É um verso. Ali. Numa árvore. A ver se a poesia não é uma abstracção. A ver se não é para ficar fechada algures. Assim não. Está nas ruas. E nas bifurcações muito livres de uma árvore.

PS: Tem sido por eles. Pelos meus alunos. Não tenho estado aqui. Mas não é por coisas más. É para poder estar como preciso de estar nas coisas: inteira. E hoje estive aqui. Dessa maneira. No dia de todos os poemas possíveis.

Advertência.



























Há destas coisas. Absolutamente viciantes. Do género de não conseguir dizer que não. Do género de ser difícil não querer mais. Daí a advertência. Já aconteceu muitas vezes. Gente que diz que não quer. Ou que não pode. Mas basta uma vez. E fica-se a querer sempre mais. Até acabar, pelo menos, esse sempre mais. Por isso, esta entrada que deve ser servida quentinha, não é nada ambígua. Inequívoca. Afirmativa. Como se em cada bocadinho gratinado que levássemos à boca, afirmássemos, sobranceiros e impotentes que sim, que não é assim muito saudável, que é capaz de arrasar com uma dieta ou outra ... e depois? Como acontece com qualquer vício, no fundo. Dizemos "e depois?"
Independentemente deste prelúdio com advertência dentro, é uma das minhas maneiras de acolher, antes do gesto de sentar à mesa. E as consequências são sempre as mesmas. Silenciosas, no início. Aquele silêncio que diz que se está a gostar muito de qualquer coisa. Depois, a parte exclamativa. No fim, o pedido. "Como é que se faz?" Assim. Faz-se assim.

Maionese gratinada com "coisas" misturadas (não consegui arranjar um nome para isto:)

Metade de uma cebola média + 4 cournichons (pequenos) + 1 pimento piquillo + salsa picada q.b. + 1 mão cheia (generosa) de queijo mozzarella + 200 ml de maionese + 1 colher (de sopa) de ketchup + 1 colher (de sobremesa) de mostarda.

Pica-se muito bem a cebola, os cournichons, o pimento e a salsa. Coloca-se tudo numa taça e junta-se a maionese, o ketchup, a mostarda e o queijo mozzarella. Envolve-se tudo muito bem e transfere-se para uma taça ou para um prato fundo que possa ir ao forno e depois à mesa. No forno, basta o tempo suficiente para gratinar, cerca de quinze minutos.

O que vem a seguir é invariavelmente o que descrevi. Aquilo de ser de não conseguir parar. Só quando não há mais. Embora aqui em casa se pergunte sempre se dá para fazer mais no dia seguinte. A resposta é um não inflexível:) Sabe bem, mas não é assim de fazer muitas vezes. Para não nos fartarmos do bem que sabe. Também pode acontecer assim. Fartarmo-nos das coisas que nos sabem bem.

Irreversível.





Quando o pressuposto está, tudo o mais acontece por si. Para a mesa com que recebi mais uma vez uma amiga que nasceu aqui, bastava aquilo que é um pressuposto. O que veio depois foram flores. Narcisos. Umas flores sem nome que eu acho lindas, de tão rosa. E uma magnólia num copo de água. Nunca consigo tirar mais do que uma, das árvores. Parece uma espécie de sacrilégio. Não sei bem qual é a palavra certa. Mas também, uma só magnólia é linda e perfumada o suficiente. Numa mesa. Nas árvores, ficam bem todas juntas. E acho que está. Acho que está, a Primavera. Já não há hipótese de Inverno. Nem que haja muita chuva. Era bom que sim. E se houver, tem de se pensar num nome diferente para esse tempo por enunciar.
Neste sábado voltou a não chover. Neste sábado, voltou aqui a minha amiga Babette. Hoje fica uma mesa com flores que dizem que a Primavera é irreversível. Tal como algumas pessoas, a Primavera.

Num dia qualquer.




Tão simples. E a lembrar aquelas coisas todas de que as coisas simples são capazes. A mais bonita é igualmente essencial. E é esta. O meu filho adora rabanadas. Parece gostar de doces tradicionais. Não se encanta com bolos com cremes. Nem que sejam às cores. Ou principalmente se forem às cores. Pede arroz doce. Aletria. Bolo de iogurte. E isto. Rabanadas. Um doce datado. Aparentemente circunscrito ao mês de todas as luzes. Rabanadas num dia qualquer. E pensar numa maneira de lhe dar rabanadas num dia qualquer. Ao mesmo tempo, a lembrança de duas das cenas mais comoventes que um filme foi capaz de me dar. No Kramer contra Kramer. Bem no início. E bem no fim. Um pai e um filho a fazer aquilo a que os americanos chamam de "french toasts". Desorientados e isolados um do outro no início. Cada um por si. A tentar compreender o incompreensível de se ser deixado. A tentar fazer com que fique tudo bem rápido. E não. Não é rápido que se fica bem. É preciso um percurso. Que eles fizeram juntos. Até ao final. Aquele quase ponto final em que reproduzem a cena em que começa o tal percurso. Mas juntos. A serem um prolongamento um do outro nos gestos simples que fazem com que se faça "french toasts". Sem palavras, aqueles movimentos. Só bater ovos. E juntar leite branco. Aquecer manteiga numa frigideira. E as fatias de pão. Só isso. E o tanto daquele só isso. Também num dia qualquer. Como as fatias douradas que fizeram com que o meu filho fosse feliz mais um bocadinho. Num dia qualquer, então.

Fatias douradas com lemon curd

4 fatias de pão de forma (sem côdea) + leite q.b.+ 2 ovos inteiros + óleo q.b. + açúcar e canela q.b.

Bate-se os ovos, junta-se o leite. Embebe-se as fatias uma a uma. Com cuidado e com alguma celeridade, para evitar que absorvam demasiado o líquido. Coloca-se a fritar em óleo quente, virando-se com frequência (3 minutos de cada lado). Retira-se para papel absorvente e a seguir, passa-se pela mistura do açúcar e da canela. Coloca-se no prato onde vão ser servidas.
E pode acrescentar-se o toque inglês de um lemon curd. Que não foi feito por mim. A ver se sim, um dia. Também é bom deixar coisas para um outro dia qualquer.  

Hermenêutica.



Acontece-me muito. Ser objecto de descodificações mais ou menos apressadas. Mais ou menos injustas. O grau varia, mas a essência é quase sempre a mesma. Para todos os efeitos, no imaginário das pessoas, há incompatibilidades que motivam as tais descodificações cheias de pressa de categorizar as coisas. Faz parte. E então, em certos domínios, a hermenêutica ainda é mais impiedosa. Como nas bancas de peixe onde não me conhecem. Neste caso, a propósito da pescada fresca que se transformou numa sopa e numa refeição delicada. A pergunta meio irónica e um bocadinho retórica: "A menina não vai levar a cabeça da pescada, pois não?" Até que percebo. A senhora via o que estava à frente dos olhos dela. Só isso. Uma mulher vestida de negro, com um colar de pérolas e uns sapatos muito altos. A segurar uma carteira que é como eu costumo dizer: aprumada. Não faz mal. O contexto pedia outra indumentária. Um outro uniforme, muito possivelmente. Acontece que a menina sabe que se pode fazer muitas coisas com uma cabeça de pescada. Acontece que a menina sabe que pode servir de base para um caldo de peixe delicioso. E que depois, até pode acontecer uma sopa. Uma sopa assim como esta.

Sopa de espigos com caldo de pescada

Para o caldo de peixe:

1 cabeça de pescada + 1 litro de água + 1 talo de aipo + sal e um fio de azeite.

É simples: tudo ao lume. Quando começar a ferver, abre-se ligeiramente a tampa da panela e reduz-se o lume. Deixa-se estar assim durante dez minutos e desliga-se. Reserva-se a cabeça da pescada e filtra-se o caldo, depois de se retirar o aipo.

Para o creme:

1 cebola + 5 cenouras + 2 courgettes (sem a casca) + 2 batatas + 1 litro de caldo de peixe + 6 pontas de espigos bem frescos (sem abdicar das folhas) + sal e azeite q.b.

A cebola com o azeite durante um minuto. Gradualmente, adiciona-se os outros legumes. E um bocadinho mais de azeite. Depois, junta-se o caldo de peixe até cobrir tudo. Um pouco de sal e fecha-se a tampa da panela. Quando começar a ferver, reduz-se o lume e deixa-se cozer durante vinte minutos. Entretanto, vai-se retirando tudo o que houver para aproveitar da cabeça da pescada, retirando todas as espinhas. Depois, corta-se os espigos grosseiramente. Reserva-se as duas coisas. Quando os legumes estiverem cozidos, passa-se com a varinha mágica até ser um creme irresistível. No final, basta juntar o peixe e as pontas de espigos, rectificar os temperos e esperar dez minutos, até que fique tudo integrado.

E é irremediável, agora. Sempre que olhar para este post, hei-de lembrar a minha senhora da pergunta irónica:) E sorrir um bocadinho e tudo. Ainda assim, tive saudades das minhas pessoas do Mercado de Lagos. Lá em baixo, não é preciso desconstruir nada. Já sabem que a menina sabe umas coisas. Mesmo que não saiba muitas outras. A parte boa destas coisas é pensar no tanto que falta aprender. No caminho que dista entre nós e as coisas todas que não sabemos.  

Mirene.



Há coisas guardadas em nós que vêm nem sabemos como. Nós até podemos achar que é do nada, que vêm. Mas não será bem assim. Aconteceu comigo, ao olhar muitas pescadas numa banca de peixe. Ordenadas, bem-comportadas. Aconteceu ver à frente, depois de me lembrar de coisas que vinham de trás. Aconteceu imaginar medalhões de pescada. Gratinados no forno. Com um toque de maionese e mostarda. Não sabia bem de onde é que vinha a parte da maionese com mostarda. Não costuma ser óbvio, nos meus gratinados. Mas depois lembrei-me de onde é que vinha. Dos livros de cozinha da minha mãe. De um em particular. O Tesouro das Cozinheiras, de uma senhora que tinha um nome abreviado, Mirene. Ali, havia sempre coisas assim. Poucas imagens. Muitas receitas. Algumas longas. Outras mais breves. Mas a sério. Por ser uma cozinha sem pretensões. Assim real. Assim virada para as diferentes possibilidades que um mesmo ingrediente pode encerrar. Como uma pescada fresca.

Pescada gratinada com maionese e mostarda

1 pescada (grande) + 1 cebola + 1 talo de aipo + 1/4 de 1 pimento vermelho + sumo de meio limão, sal e azeite q.b.

Para o molho:

1 colher (de sopa) de Maizena + meia chávena de leite + 3 colheres (de sopa) de maionese + 2 colheres (de sobremesa) de mostarda + cebolinho, pimenta preta e sal q.b.

Dispõe-se os medalhões (uma pescada com um tamanho razoável dá para uns oito) num pirex. Tempera-se com sal e limão e reserva-se. Entretanto, pica-se a cebola, o aipo e o pimento. Espalha-se por cima dos medalhões e acrescenta-se um fio de azeite. Vai ao forno durante vinte minutos. Decorrido este tempo, passa-se o molho que resultou da ida ao forno, para um tacho pequeno. Numa chávena, dissolve-se a Maizena na chávena de leite. Junta-se ao líquido quente do tacho e mexe-se de imediato. Acrescenta-se depois a maionese e a mostarda e mistura-se com cuidado. Quando o molho estiver bem "ligado", tempera-se com a pimenta, o sal e o cebolinho picado. Cobre-se os medalhões de pescada e vai ao forno a gratinar (uns quinze minutos). A acompanhar, arroz branco e legumes desta altura do ano.

E está. A pescada gratinada com um toque de mostarda. Inspirada num livro que parecia estar arrumado na memória. E não. Hoje ocorreu-me que nunca vi o rosto da tal Dª Mirene. O livro era azul-escuro com letras douradas. E só tinha o nome curtinho. Também com letras douradas. Mas nada de rosto. A minha imagem mental sempre foi muito nebulosa. Mas era assim. A Dª Mirene seria de estatura média. Usaria quase sempre um twin-set em tons pastel e uma saia pelo joelho nos mesmos tons. Um colar de pérolas e as unhas pintadas de vermelho. Nas poucas imagens em que se vê qualquer coisa daquilo que ela era, as mãos apareciam sempre muito bem arranjadas. E com as unhas pintadas de vermelho. Não sei mais nada da Dª Mirene. Nem sequer se ainda vive. Sei que sempre gostei muito do Tesouro das Cozinheiras, que achava piada à ideia de as cozinheiras poderem ser donas de um tesouro. E até que sim.

Para a senhora que escreveu um tesouro. Com letras grandes, O Tesouro das Cozinheiras. Pequeninas de humildes, as letras do nome dela. Mirene.

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