Para guardar.


Nunca me tinha acontecido isto. Fazer um jantar com alunos. Não eram só meus alunos. Eram de outra turmas, também. Não consigo lembrar-me de quantos estavam naquele cenário metálico de cozinha industrial. Mas sei que foram de uma doçura voluntariosa inesquecível. Sei ainda que houve um grupo que se dedicou a descascar (muitas) cebolas e (muitas) cenouras. Mais batatas e courgettes. Para uma sopa feita numa espécie de caldeirão:). Depois a "equipa" da massa gratinada. Mais vegetais partidos em pedaços. E bacon em cubos. E muitas coisas. Souberam fazer tantas coisas, eles. Com aquela alegria que eu sei que é para guardar. Com o carinho todo que eles merecem.
Lembrei-me de fazer isto com eles. Por que não fazer um jantar com e para os alunos que vivem fora de casa durante a semana? Na escola, porque a casa deles é literalmente a escola. Acordam e adormecem ali. E isso determina muitas coisas. Determina que eles sejam assim como são. Determina que eu goste deles assim como são. Com todos os traços irrepetíveis que trazem consigo. E muitos deles nem sabiam desta minha vertente nem nada. Alguns sim. Mas naqueles dois finais de tarde, acho que perceberam que há uma outra dimensão, para além daquela que existe numa sala de aulas todos os dias. Com os mesmos saltos altos e tudo:) O balanço final deste dia foi uma sopa maternal feita pelos meus alunos. Uma massa gratinada. Uma salada com o verde a dominar, mas com mais cores. E pêras cozidas com cobertura de chocolate. Este foi o balanço mais ou menos tangível. O outro é tão imaterial. Tão interior. Tão de ficar aqui. Como a outra sessão. Dedicada às outras coisas que são de mesa. A postura certa. Os gestos. Os copos e os talheres. A colocação do guardanapo no colo. Coisas assim. Coisas assim que eles acolheram com aquela vontade alegre de querer saber mais. Porque o sentido maior desta segunda parte foi-lhes explicado no início. E era simples: não queria que nenhum deles se sentisse diminuído por ambientes que às vezes são esmagadores. Que podemos tentar minimizar os factores de fragilidade. Como este, que é tão simples. Mas as coisas simples são aquelas que devemos procurar saber de olhos fechados. E que tendemos a diminuir. E então vieram para mais um final de dia. Com aquela alegria toda de que só eles são capazes. E ouvir as coisas simples que lhes queria dizer. No restaurante pedagógico da escola onde acordam e adormecem. A escola onde tenho o privilégio de os ver crescer todos os dias. Todos os dias mais um bocadinho. Hoje dizem que não são capazes de uma coisa. No outro, já não é bem assim. Num dia, anunciam que não querem poesia. No outro, já estão a escrever, ávidos, fragmentos do Livro do Desassossego. E assistir a isto tudo. A dádiva que é poder assistir. E a gratidão. A minha. Por cada um dos dias. Mesmo aqueles difíceis. Em que sinto que não cheguei. Que não fui capaz. Também há dias assim. Mas eu sei que a névoa confusa assenta. Aquela que vem sempre que nos sentimos insuficientes. Sei que assim que ela vai embora, penso que é para voltar a tentar. Porque voltar a tentar qualquer coisa é sempre libertador. Vale por si. E é tudo.

NB: Tenho a "benção" dos meus alunos, por causa das fotografias deste post. A imagem deles aqui carecia de autorização prévia. E eles foram generosos. Mais uma vez.  

MST




Há um livro novo, aqui. Ainda não descansa junto aos outros, que ando a lê-lo. E a achar lindas as imagens muito próximas do meu imaginário. Uma cozinha de afectos, o livro que se chama Cozinha d' Amigos. De Miguel Sousa Tavares. E não é preciso demorar-me mais do que isto. Porque o importante é deixar aqui um dos meus livros. Oferecido sem pensar duas vezes pelo meu marido. Que diz que reconhece ali a minha devoção inicial pela comida. Pelos mercados. Pelos rituais demorados associados à mesa. Eu acho que o que gosto mais é o tom livre e despretensioso dos textos. A hermenêutica é muito simples, nestas páginas. Quase como o homem que as escreveu. Gosta-se. Ou não. Há pessoas assim. Que não são meio-termo. Que não ficam entre uma coisa e outra. Em vez disso, escolhem dizer-se. E deixar à consideração. Mesmo que essa parte não lhes interesse assim muito.
E mesmo a calhar, antes do livro, isto. Perdizes. Uma receita de caça, então.

Perdizes e colheita tardia

2 perdizes + metade de uma garrafa de um colheita tardia + meio copo de um bom whisky + sal + azeite + pimenta preta moída na hora + uvas brancas (sem grainhas) + 10 castanhas + 1 dente de alho esmagado.

Basta o tempero. Basta deixar as perdizes embebidas no tempero. De um dia para o outro, se for possível. O resto acontece num tacho. As perdizes, o tempero e as castanhas, juntos num tacho fechado em lume brando. Durante uns quarenta minutos. Nos últimos dez minutos, os bagos de uvas juntam-se ao que está. Pouco antes de ir à mesa, uma sertã com uma dose generosa de azeite. Primeiro, só as perdizes e o azeite quente. Para que a pele fique dourada. Depois, o tempero que ficou a repousar no tacho. Mais as castanhas e as uvas. Até reduzir ligeiramente. Serve-se como a nossa intuição ditar. Neste dia, foi com um puré especial. Mas é o género de comida que vale por si. Que não precisa de grandes auxiliares. Talvez umas fatias de um pão substancial. Talvez umas batatas fritas em azeite. Talvez o que quisermos.

Quando um restaurante é muitas coisas.


Há uns dias, uma vontade enorme de ir à Casa Aleixo, no Porto. Mais especificamente dos filetes de polvo da Casa Aleixo. Porque este é um daqueles lugares. Um daqueles lugares onde se vai porque se teve uma motivação específica como a minha. Acaba por ser vontade de tudo, ali. Da sopa que é como a de uma mãe. Dos bolinhos de bacalhau quentes, logo a seguir. Dos tais filetes de polvo com legumes salteados. E as sobremesas. Rabanadas todo o ano. Como se fosse possível ser Natal todo o ano. E a aletria. Fios cremosos a saber a canela. E a alegria do meu filho. Por ser um dos doces preferidos dele. O meu filho. Ele nem sabia. Mas aquele lugar é significativo por outros motivos que não os que são de comer. No fundo, a comida acaba por estar sempre ligada a outras coisas. A primeira noite que a mãe dormiu longe dele, faz agora dois anos. Era preciso saber se conseguíamos os dois estar longe um do outro durante a noite. Já tinha passado demasiado tempo. Já não era um bebé. Toda a gente dizia que sim. Que era bom sabermos estar longe um do outro. Aprendermos isso, ao fim de quatro anos. O jantar dessa noite foi ali. E eu era uma angústia só. Sempre a olhar para o telemóvel, à espera que me dissessem que tinha de ir embora. Mas não aconteceu nada disso. Aquela noite ensinou-me muitas coisas. Ensinou-me a saber que devemos dar espaço aos nossos filhos. Que podemos dizer-lhes que vamos ali um bocadinho. Mas que voltamos. Voltamos sempre dos sítios onde vamos só um bocadinho. E o carinho da senhora que me trouxe um doce, para acalmar a tal angústia. Não fique assim, menina. Ele está bem. Olhe mas é para o seu homem. A sabedoria das mulheres que já viram muito. E eu aprendi. Só de ouvir a voz despachada da dona Inês.
Desta vez não houve angústia. Ele foi connosco. Ao sítio que é significativo. Para nós, que estamos agora a viver. E para os que deixaram de existir. E assim, o meu filho conheceu o lugar onde o pai e o avô que já não está cá iam. Muitas refeições. Têm os três o mesmo nome. Mas não dá para os imaginar ali juntos. As três gerações. Mas deu para ver os dois de mão dada. À mesa da Casa Aleixo. E também para os imaginar aos dois. Ali sem mim. Numa daquelas coisas de pai e filho. E saber mais uma coisa nisto de ser mãe. Saber que esses espaços imperturbáveis devem ser respeitados. Com a distância carinhosa que pressupõe o amor. Porque o amor liberta. Não sei assim muitas coisas sobre o amor. E até acho que ninguém saberá. Mas sei que o amor liberta. Que sabe esperar. Por cada regresso. Uma espécie de amor que dá asas, acho. E que espera pacientemente que corra tudo bem.
Depois de almoço, um pedaço da infância do pai. As paredes que viram a infância do pai. Era importante que ele visse. Era importante que aquelas paredes ficassem aqui. E estão. Para não serem abstracções. E assim, também as paredes ficam aqui. Associadas às da Casa Aleixo.

NB: Ao contrário de mim, a minha máquina fotográfica é capaz de ser definitiva. Peremptória mesmo. Com um aviso nesse tom. Substitua a bateria. Daí as fotografias serem ainda mais amadoras do que o habitual. De telemóvel, numa solução de recurso. Daí pedir desculpa.

Aos pedaços.




No fundo, foi como se nunca os tivesse feito antes. Apesar de saber que já tinha tentado várias versões possíveis. Mas nunca chegavam a ser a receita. Parecia que nunca chegava a ponto nenhum. A minha receita de brownies parecia uma peça inacabada. E as coisas inacabadas custam-me um bocadinho. Por saber que algures, são algo a que regresso. Com a persistência mental a que regressamos a uma coisa que temos como inacabada. Não pela imperfeição em si. Não chegava bem a ser isso. Era mais por me custar não conseguir chegar ao ponto num bolo que para mim significa carinho. Não são assim muito bonitos, estes bolos breves. Não têm a imponência de outros. Nem sequer são da complicação de precisarem de muitas tarefas ou etapas para chegarem a ser um bolo digno desse nome. Acho que gosto que sejam despretensiosos. Simples. Algo que possamos dizer que vamos fazer. E no momento a seguir já serem reais. Quadrados feitos de carinho. A saber muito a chocolate. Quase nada de açúcar. O chocolate faz o caminho todo. Aquele caminho que sabe bem. Com frutos secos e passas pelo meio. E um bocadinho subtil de crème de cassis. Que deve ser assim como são as coisas subtis. Quase imperceptível. Do género de se sentir que há qualquer coisa para além do chocolate e do que está. Mas não se conseguir dizer o que é. Só que é qualquer coisa.
Consegui. Era só para dizer isso. Só para dizer que os bolos que não são assim muito bonitos deixaram de ser uma representação mental inacabada. E que por serem breves, podem ser fragmentos carinhosos. Que se podem disseminar. Em caixas pequenas que podem guardar coisas que não têm tamanho.

Brownies

1 tablete de chocolate para culinária + 150 g de manteiga + 3 ovos inteiros + 5 colheres (rasas) de açúcar + 5 colheres (rasas) de farinha + 10 nozes + um punhado de passas + meio copo de crème de cassis.

Derrete-se primeiro o chocolate com a manteiga em banho-maria. Entretanto, bate-se os ovos com a farinha e com o açúcar. Até a massa fazer aquelas bolhinhas que nos dizem que já chega:). Quando o chocolate e a manteiga estiverem derretidos, junta-se à mistura anterior e bate-se em velocidade média. Junta-se depois as nozes (que devem ser quebradas grosseiramente num saco fechado, com o rolo da massa) e as passas. Envolve-se muito bem e chega-se ao fim, depois do crème de cassis. Vai ao forno durante uns quinze ou vinte minutos. Depois é só partir em quadrados, ainda quentes.

Já está. A receita de brownies. Não posso dizer definitiva, que tenho medo dessa palavra. Mas posso dizer que até ver, esta receita foi a melhor de que fui capaz. Isso já se consegue dizer. Com a receita, fica a música que esteve lá, enquanto estavam a ser feitos os bolos que são de comer aos pedaços. E acho que consigo dizer que hei-de gostar sempre da cadência doce e demorada desta música dos Massive Attack.

Mesa nocturna.


Tinha saudades de guardar mesas postas à noite. Apesar de saber que as imagens lá de fora ficam melhores. Mas creio que isso tem a ver com a minha falta de talento. Lá fora é mais fácil. Quase que não sou precisa para nada, que as árvores e a luz fazem o resto. Ainda assim, uma mesa nocturna. Num daqueles sábados inquestionavelmente de Inverno. Chuva por todo o lado. Chuva todo o dia. E o bom de estar aqui, quando é assim. De não apetecer outro lugar que não este. E preparar tudo com muita calma. Saber que cada gesto é ponderado. Talvez pela cadência da música nocturna. Não sei se foi por isso. Mas acho que a mesa nasceu da música. E da lembrança das naturezas mortas da Gulbenkian. A Perspectiva das Coisas à mesa, então. Com pássaros que não são a sério pousados em peças de fruta a sério. Não dava para ser de outra maneira, que os pássaros a sério não dão para estas coisas de naturezas mortas. Querem-se livres, as asas dos pássaros a sério. E as velas que há todas as noites. Em cada uma das mesas nocturnas. Por começar por aí todos os dias. Primeiro, acende-se as velas. Depois, vinho tinto num copo largo. E a música que há enquanto há cada um destes gestos que antecipam. Tudo o mais acontece depois de acontecerem estas três coisas. A luz de uma vela. Um copo de vinho. E a música. Foi assim com a mesa das naturezas mortas. É assim com todas as outras mesas. Por isto:

"Para quem faz do sonho a vida, e da cultura em estufa das suas sensações uma religião e uma política, para esse, o primeiro passo, o que acusa na alma que ele deu o primeiro passo, é o sentir as coisas mínimas extraordinária e desmedidamente. "

Livro do Desassossego - Educação Sentimental
Bernardo Soares

Sentir as coisas mínimas extraordinária e desmedidamente. É assim. É por aí. Não é mais do que isto. E assim, não é preciso outra religião que não esta. A religião das coisas mínimas. Que afinal são extraordinárias e desmedidas.

Habitar transitoriamente.





Lugares transitórios. Onde sentimos mais que afinal podíamos não pertencer a lugar nenhum. Há a ideia de uma casa. Mais ou menos permanente. Mais ou menos quieta. E há os lugares todos onde estamos mesmo de passagem. Como os hotéis. Metáforas muito cheias de nós. Talvez por nos darem hipóteses libertadoras. De nos perspectivarmos isolados. Fora da nossa zona de conforto. Longe de objectos acumulados. Longe de uma série de significantes. E de significados. E de repente podíamos ser outros que não nós. Personagens num palco transitório. Há uma hermenêutica própria para isto de andarmos em trânsito. De estarmos sozinhos, mesmo que até nem seja bem assim. Mas a metáfora é mais evidente nos hotéis. Podiam ser só não-lugares. Pelo óbvio. Mas o bom é não serem isso de não-lugares. E então, gosto sempre da sensação de chegar a um quarto vazio de hotel. Por chegar a um lugar que nunca significou nada antes. Por ser um espaço onde vou habitar transitoriamente. Nenhum dos objectos significa nada. Não fui eu numa viagem qualquer. Não fui eu por um afecto qualquer. Não fui eu e um dos meus impulsos quaisquer. Nada de mim foi ali deixado previamente. Não havia nada meu. Antes de entrar, digo. Antes desse movimento simples, não havia nada. E no entanto. No entanto, há sempre aquele detalhe que faz com que assim que entre, passe a ser qualquer coisa que não havia antes. Procuro não deixar que as coisas passem incólumes. Mesmo as transitórias. Talvez por saber que aquilo que remanesce de cada uma delas não tem nada de transitório. Enquanto eu existir.
Enquanto eu existir, existe mais esta memória. Pelo menos isso. Pelo menos um quarto que era vazio. No Tivoli da Avenida da Liberdade. Fica a luz e as árvores adivinhadas lá fora. Um lugar de contemplação, que foi o quarto que era vazio de mim. O sol de um sábado qualquer numa mesa qualquer de pequeno-almoço. Muitas imagens em mim. Carros negros a parar muito rápido. Homens de negro de óculos escuros a sair muito rápido das fortalezas negras. Olhares vigilantes e filtrados em volta. E adianta mesmo? Isso de haver fortalezas negras e rápidas. E homens vestidos de negro com o olhar ocultado. É fácil distraí-los, afinal. Tão fácil. Quando é assim, os olhares ficam silenciosos. Nada vigilantes. Em suspenso. E no quarto anteriormente vazio, fica sempre uma palavra num papel. A que apetecer. Num sítio onde não puder ser encontrada. Tantos fragmentos espalhados, por esta altura. E nunca ninguém há-de dar por eles. Ou talvez não. Que também é bom pensar na possibilidade de serem encontrados.
Eu tinha dito que ia voltar à habitação transitória da Avenida. E aconteceu assim. Voltar mais. Voltar sempre. Ao lugar onde uma actriz resolveu fazer uma casa. Num quarto de hotel. Talvez um quarto de hotel não seja uma coisa assim tão transitória, afinal. Pode bem ser uma casa.

Qualquer coisa de narrativa.



Era o que me apetecia hoje. As duas coisas das imagens. Jantar no XL em Lisboa. E um concerto dos Pearl Jam. E não dá. Nem para uma coisa nem para outra. Mas dá para a memória das duas coisas. De um jantar num lugar com muitas velas. Com uma luz que era assim pela metade. E fechar os olhos. E lembrar-me que estava vestida de negro. Como na memória de cada uma das vezes em que ia assim. Vestida de negro para ir ouvir e ver a música a acontecer. Sempre de perto. E uma ideia difusa do resto. Dos outros corpos todos. Muito juntos. Perigosamente juntos, que há uma componente de irracionalidade em cada multidão. Porque a multidão não quer pensar, às vezes. A única vez em que fui capaz da solidão toda, a memória de um concerto dos Pearl Jam. É isso que significa a música vinda de uma das cidades mais chuvosas dos Estados Unidos. Significa experimentar a fragilidade por inteiro. Respirar sozinha no meio de uma multidão. E dizer-me que ia ficar tudo bem. Enquanto houvesse possibilidade de música. E possibilidade de vida. Ia ficar tudo bem. E não importava nada estar sozinha no meio de muitas pessoas. Que há sempre uma melodia irrepetível que toma conta de nós.
Mas a ideia era falar também de um restaurante. E isso acontece por ter gostado muito.  Esse é o critério mais importante. E básico. É um daqueles sítios onde há muito tempo se vai em busca de coisas que se mantêm. Muito importante isto de algures haver coisas que se mantêm. E saber que quando se quer comer um soufflé, este é um dos sítios onde se sabe que há-de correr bem. E um bom bife. Com muitas declinações à escolha. Ou o mais simples possível. Que também isso há-de correr bem. Se fechar os olhos outra vez, estou a existir outra vez vestida de negro. E na mesa em frente, há uma família grande. E todos os sons e movimentações próprias das famílias à mesa. Ao balcão, um homem sozinho. Um copo sozinho à frente. E olhares persistentes para o relógio. Ela chegou finalmente. E o tempo do relógio deixou de importar. Há mais um copo ao balcão, agora. Antes da vela a iluminar a mesa onde se senta uma história que começa. As histórias de amor são sempre iniciais. Com tudo o que há de incompreensível em cada início. Narrativas, que somos todos. Narrativas que nunca foram. Narrativas que deixam de ser, quando deixarmos de ser. Ando a pensar que vou ter de voltar ao Xl. Para mais um soufflé de espinafres. E um copo de vinho tinto. A ver se a narrativa ainda lá está. À espera de um início incompreensível qualquer. Enquanto não, a música. Linda, que é esta música. Com qualquer coisa de narrativa, também.

Creme de castanhas e uma primeira frase.



Durante os dias em que não escrevi aqui, aconteceu o meu filho escrever a primeira frase. Uma coisa muito importante, essa de se escrever uma primeira frase. E a minha alegria pela alegria dele. Depois de escrever a frase que repito interiormente todos os dias. Principalmente nos que custam mais. Que são exactamente aqueles em que temos de ser mais inteiros. Perguntou-me logo se podia fotografar para pôr no blog. Eu disse que durante uns dias não ia haver blog. E o meu pequenino perguntou isto. Se eu tinha deixado de gostar das pessoas. Como é que uma criança de seis anos tira conclusões destas? Como é que acontece que dentro dele, o blog onde a mãe deixa a mesa do almoço ou uma sopa, signifique gostar de pessoas? Guardei a imagem e a folha como tesouros muito frágeis. Ficaram as duas coisas preservadas. À espera de chegar aqui. Para ficar sempre a primeira frase que ele escreveu. Que eu quero tanto que signifique o que significa para mim. E eu não peço que ele seja o mais inteligente da turma. A sério que não. Ou o mais forte. Mesmo que o meu pequenino até seja o mais alto. Mas isso são coisas incontornáveis da genética:) Em tudo o mais, desejo só uma coisa para o meu filho: que seja sempre inteiro. Se conseguir que ele seja assim, sei que estará tudo bem. Mesmo que a vida não corra bem. Que a vida não é lisa. Não é como nós achamos que vai ser. Por isso é que lhe explico cada um dos meus nãos. Que vai ter de esperar por um presente que quer muito. Que tem de o merecer. Por ser assim que a vida faz muitas vezes às nossas vidas. A vida lá fora, a que vai estar fora do nosso alcance. Que ele perceba devagar cada um dos nãos que eu digo com o amor todo de que sou capaz. Para saber lidar com isso. Mas há uma coisa que é sempre sim. Esta que fica hoje. A sopa preferida dele: creme de castanhas. Por esta altura, pergunta todos os dias se a posso fazer muitos dias. E eu digo que sim. Sem mais. Os sins conjugados com os nãos hão-de fazer com que ele seja inteiro. Como no poema de Ricardo Reis. E esta sopa também há-de ajudar a isso de ser inteiro. E grande. Sei que sim. Mesmo que não saiba muitas outras coisas nisto de ser mãe. Mas sei fazer uma sopa que o há-de ajudar a ser grande.

Creme de Castanhas

2 cebolas médias + 1 batata + 1 courgette + três cenouras + 10 castanhas + água, azeite e sal q.b.

Faz-se um refogado com as cebolas e o azeite. Progressivamente, vai-se juntando os restantes vegetais. As cenouras às rodelas primeiro, depois a batata, a courgette (sem casca) e as castanhas. Acrescenta-se água aos poucos, até cobrir tudo. Fecha-se a panela e deixa-se ferver. Quando sim, reduz-se o lume e espera-se uma meia hora. Depois é só fazer com que o creme fique mesmo assim: cremoso. Daquela maneira de que eles gostam muito. Os nossos pequeninos que um dia hão-de ser grandes. E que andam a aprender isto de se ser inteiro. Como nós todos, no fundo. Que passamos a vida a tentar encontrar maneiras de ser inteiros. Melhor quando é assim, creio. Acabamos por nos resgatar sempre. Quando nos lembramos de ser tudo o que somos. Em tudo.


A propósito de virtudes escondidas.


























Creio que uma das coisas de que mais gosto nisto de fazer comida é mesmo a possibilidade de reinvenção. E isso ser ao alcance. Não ser uma coisa longínqua ou inatingível. Nada disso. E o melhor é quando isso acontece com coisas tidas como muito simples ou até sem graça, de tão insípidas. Como medalhões de pescada. Eu disse que era uma coisa bem simples, não foi? Pois então. Isto de fazer comida ensinou-me mais uma coisa. Ensinou-me que os medalhões de pescada que estão em quase todos os congeladores, à espera de serem sempre uma espécie de solução de emergência, podem ser soberanos a uma mesa. Isso e aromáticos. E delicados. E elegantes. Aconteceu de repente. Apetecia-me um gratinado de peixe. Mas não me apetecia nada a parte de me livrar das espinhas. E então, aconteceu um gratinado que é assim como eu disse há pouco. Foi feito duas vezes. Num dia de chuva, a primeira vez. E num dia de sol de Outono, a segunda vez. E soube-me bem das duas vezes. Sinal de que é para continuar a fazer. E ser sempre tradução de uma vontade. Para que os medalhões de pescada deixem de ser só soluções de emergência:)

Gratinado de pescada e camarão

4 medalhões de pescada + 1 cebola picada + metade de um pimento vermelho + metade de uma courgette em cubos muito pequenos + 10 camarões + 5 batatas + seis cournichons picados + 1 copo de vinho branco + béchamel q.b. + 1 pacote de natas + sal, azeite e pimenta vermelha q.b. + queijo mozzarella q.b.

Faz-se o refogado com a cebola, o pimento, a cougette e os cournichons. Passados uns dois minutos, junta-se os medalhões, os camarões (usei congelados e sem casca, que estava preguiçosa:), o copo de vinho branco e um pouco de sal. Fecha-se o tacho e deixa-se estar a cozinhar. Entretanto, frita-se as batatas, cortadas em palitos finos. E também se pode fazer o béchamel. Assim: meio litro de leite + 1 colher de manteiga + uma pitada de sal + pimenta preta moída + 2 colheres generosas de Maizena. Quando os medalhões estiverem cozinhados, junta-se-lhes o béchamel e depois as batatas fritas. Envolve-se tudo muito bem e finaliza-se com o pacote de natas. Mistura-se e rectifica-se os temperos: mais sal e pimenta vermelha. Leva-se ao forno, depois de se cobrir com o queijo mozzarella. Só até ficar com aquele aspecto que dá muita vontade de ir rápido para a mesa. Quando chegar lá, basta ser acompanhado por uma salada verde com maçãs que também são verdes por fora.

E descobrir que afinal gostamos de comer pescada. Coisas das virtudes escondidas dos medalhões de pescada. Tão bom quando descobrimos virtudes escondidas em coisas que achávamos que eram só sem graça. A ver se não me esqueço disto.

Só para não me esquecer.

Lembrava-me muitas vezes dela. E era como acontece muitas vezes. A muita gente. Dizia-me logo à noite, quando houver mais calma. Ou amanhã, ao final da tarde. E acontecia sempre alguma coisa. Ou o logo à noite era já tarde. E afinal não tinha havido a tal calma. Ou o final de tarde era sempre cheio de coisas apressadas. Ou de cansaço, simplesmente. Tão incontornável, por vezes, que achamos melhor não o impor a ninguém. A outra versão era acontecer telefonar e rematarmos com o comum temos de combinar um almoço. Mas no meio destas coisas todas, há o afecto. A evidência do afecto. É que são urgentes, os nossos afectos. Por vezes, são mesmo aquilo que temos de fazer a seguir. De imediato. Sem adiamentos. E tão bom que o comum de remeter a possibilidade de um almoço para um futuro (im)provável aconteça assim: podemos almoçar este fim-de-semana? E sim. Assim sem mais. Claro que sim, que podemos almoçar. Só para não me esquecer que não é assim tão difícil arranjar maneira de almoçarmos com as pessoas de quem gostamos. Que não é assim tão difícil telefonar porque sim. Quando sim. De vez em quando esqueço-me destas coisas. Mas a amizade vem num impulso lembrar-me as tais evidências: quando gostamos, dizemos. Quando queremos ver alguém, arranjamos maneira para que aconteça. E saber que até pode acontecer querermos só muito. E não haver seguimento. Também acontece ser assim. Mas isso tem outros nomes. Deve ser uma coisa diferente. Mais elaborada, possivelmente. Só que eu acho que sou muito básica nestas coisas. E então, prefiro a versão impulsiva e afectuosa. A versão que se lembra. A versão que assinala a dádiva da amizade. A versão que põe uma mesa. E faz um almoço para uma amiga de há muito. A primeira pessoa que conheci, num lugar austero e um bocadinho severo. Cheio de regras e de silêncios. Há uns anos atrás. O sorriso franco da minha amiga fez com que aquele lugar de corredores intermináveis fosse a minha casa de repente. E eu não me esqueço disso. E de todas as outras coisas que se seguiram a esse momento inicial. Este almoço foi mais uma declinação desse momento. O tal em que nos acolhemos mutuamente.  Só para nunca me esquecer.

Depois de parar.































Acho que queria ser capaz de deixar de presente todas as coisas boas dos dias de parar. Os dias de sol e os de chuva. A música toda que ouvi e que me fez bem. As coisas ínfimas que me lembraram que o melhor de tudo é assim: ínfimo. Quase imperceptível. Acho que também gostava de ser capaz de dizer a solidão toda que houve por estes dias. Estive muito a sós. Com as minhas fragilidades todas, muito principalmente. E com o peso quase etéreo da memória irrepetível que se é. Não consigo isso de deixar tudo. Mas posso tentar deixar isto. Um arco-íris fotografado enquanto conduzia, a caminho de um dia cheio de aulas. Um bocadinho de Outono atrasado nas folhas das árvores do jardim. A imagem imperfeita de uma árvore que tem a minha idade. Num dia de muita chuva, a imagem imperfeita. E o bom de gostar de imperfeições. A lembrança da alegria do meu filho, porque a abóbora que fizemos ganhou um concurso de abóboras assustadoras. O tempo passado a descobrir um livro de receitas acabado de publicar. Com fotografias lindas, que dão vontade de ir rápido a Inglaterra. E calçar umas Wellies verdes num dia de muita chuva. Um caderno à espera de ser escrito. Um caderno à espera de ser cheio. De tudo o que enche os cadernos da viagem mais imprevisível de todas: a que é interior. A que não dá para ser fotografada ou dita por inteiro. Fragmentos de uma viagem interior. E impossível de delimitar. Mesmo que a única premissa certa dessa viagem seja exactamente isso da delimitação. O detalhe que muda tudo é que não sabemos quando. Nem como. Mas ainda assim, continuamos. Rumo à delimitação. No entretanto, vive-se. E o lindo disso de viver ainda assim. Somos todos de um atrevimento supremo. Fazemos planos. Antecipamos uma quantidade de coisas mais ou menos extensa. Dizemos sem pensar daqui a uns anos. E esse é o sinal maior do nosso atrevimento. Ou da nossa fé enorme na possibilidade de um dia seguinte. Não sei. Mas acho que sei que gosto muito desse nosso atrevimento. Dessa nossa fé enorme numa abstracção. A de existirmos. Apesar de sabermos que vamos deixar de existir.
Tinha saudades, eu. Queria voltar, eu. E estou feliz por ter podido voltar. E por ter tido saudades.

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