Parar.





A sensação persistente de estar a falhar. Sempre alguma coisa que fica por fazer. Por mais que até faça listas. Por mais metódica e organizada que seja. Mas não estou claramente a ser capaz. A começar por esta dimensão. Onde me sinto a falhar. Apesar de haver coisas para dizer. Receitas e aquelas coisas que as receitas motivam, quando acontece sentar-me para escrever.
E então, se passo a vida a dizer que sou declarativa, esta declaração. Preciso de parar. Apercebi-me há uns dias que sim. Que era urgente parar. Uma dimensão minha que precisa que eu pare. Para ter a sensação de chegar ao fim. Importante chegar ao fim das nossas dimensões. Como querer chegar ao fim de um livro. Respirar na última página. E partir para outra coisa qualquer. Mesmo que não se saiba qual é essa outra coisa qualquer. Mas creio que só se parte verdadeiramente quando se tem a sensação de chegar ao fim de uma página.
E precisava disto. De dizer isto. A quem escolhe vir aqui. Mesmo que seja só uma pessoa. Uma só pessoa merece isto. Como se precisasse de me justificar ou assim. Não sei bem. Como se precisasse de dizer que preciso de uns dias. Que daqui a uns dias que não sei quantos são, vai voltar tudo. Mas que agora é preciso desaparecer um bocadinho. E dizer que gosto muito de estar aqui. E dizer que no entretanto, queria deixar luz de presente. Luz apanhada a andar rápido. Parte das luzes de uma cidade de que gosto tanto. E a música dos Depeche Mode. Que tem acompanhado a dimensão que precisa de mim. Depois disso, um bocadinho de silêncio. Até que voltem as palavras. Até lá.

Fazer acontecer.



























São muito curiosos os mecanismos que fazem com que as pessoas coincidam. Há aquilo de nos sentirmos ligados a pessoas que fazem parte do nosso mundo desde que conhecemos o nosso mundo. Depois há os percursos. Ditados por escolhas. Coisas que determinam outras. E há coisas destas. Completamente imponderáveis. Completamente do domínio da graça. Coincidir com alguém. Alguém que pela ordem previsível não faria parte do nosso mundo. Mas sim. Um dia acontece alguém que não era suposto. Que não estava para acontecer.
E agora aqui. Aqui as imagens. Aqui palavras. Aqui dizer isto. Que a minha amiga Babette esteve lá fora no jardim. Que se sentou à minha mesa. Que bebemos champanhe todos juntos no terraço. Que brindámos às coisas todas que hão-de vir. Que os filhos dela e o meu foram pequenos índios ali fora. Mas que se portaram muito bem e comeram tudo:) Dizer que finalmente coincidimos numa data para que estas e as outras coisas todas pudessem ser reais. Não projectadas. Não adiadas. Não remetidas lá para frente. Indefinidamente.
Acontecer. Gosto muito desta palavra. Por podermos pôr nela o que quisermos. Primeiro acontecemos nas vidas uns dos outros. E isso não é controlável. Não nos pertencem os mecanismos pelos quais essas e outras coisas acontecem. E a seguir, nós. Fazemos acontecer. Ou não. Aí vem a parte da escolha. Fazemos acontecer ou deixamos cair tudo? Eu e ela somos de fazer acontecer. Por isso é que tivemos um dia lindo de sol. A uma mesa com flores e espelhos e azuis que tinham sido trazidos a pensar no dia em que viesse cá. E sim. Essas escolhas pequeninas fizeram sentido. Foram exercícios de escolha imperceptíveis. A preparar o caminho que a traria cá. Mesmo que até tenha sido um bocadinho mais longo do que estávamos à espera. Mas aconteceu. Já se pode conjugar o verbo assim. Aconteceu. Bom isto. De dizermos coisas que aconteceram nas nossas vidas. Pertence-nos isso. No fundo, é a única coisa que nos pertence verdadeiramente. O que vivemos. O que já nos aconteceu. Eu fico sempre feliz por dizer que aconteceu. Uma consciência da finitude. Que liberta. A ideia da minha finitude. E de isso poder ser iminente. De poder haver coisas imponderáveis e intrusivas que acabem com tudo. E com isso, tudo. Tudo o que não foi vivido. Tudo o que foi adiado. O almoço de hoje foi mais uma das coisas belas da minha vida. A Babette e a família dela são muito. São muito para mim. E eu nem sonhava que iria ser assim. Bom, não é? Acontecerem coisas e pessoas que nem sonhámos. E isso tudo, e nós fazermos acontecer mais.

Expectativa.



Ocorreu-me a palavra. Expectativa. Bem antes de provar o melhor moscatel do mundo. Numa altura em que o nosso ego colectivo parece andar tão cá em baixo, uma designação tão definitiva. É nosso, o tal moscatel. E tem uma cor linda. Quase luz, o melhor moscatel do mundo. E a tal expectativa. Porque quando nos é dito que vamos provar uma coisa que é a melhor, a hesitação inevitável. Um equilíbrio frágil, então. Tudo o que provámos antes a voltar à memória sensorial. Ou então não. Ou então procurar uma espécie de vazio que não se consegue. E tentar esquecer. Nada disto é possível. Por isso, o elementar. Ver se sim. Se para nós sabe a melhor qualquer coisa. Não posso saber se é o melhor. Falta-me demasiado para isso. Convém ter a noção das circunstâncias, dos contextos. Mas sei isto: soube-me muito bem. E isto parece-me suficiente. Porque ter-me sabido muito bem sabe agora a cada um dos respirares antes. A cada um dos respirares depois. E ao que ficou entre. Que é sempre o mais importante. E entre um respirar e outro, pode bem acontecer isto:

Chèvre Saint Loup com mel e alcaparras

Uma fatia generosa de chèvre Saint Loup (pareceu-me mais suave do que outras possibilidades de chèvre) + 2 colheres (de sobremesa) de mel + 2 colheres de azeite (de sobremesa) + alcaparras q.b.

Fácil: coloca-se a fatia de chèvre numa taça que possa ir ao forno. Por cima, o azeite e o mel, previamente misturados. E no fim, as alcaparras. Vai ao forno até que derreta. E serve-se com fatias de pão tostado. Ou tostas.

NB: Eu sei aqueles pressupostos todos. Que este é um vinho habitual de fim de refeição. Mas sabe bem no início, também. E é bom fazermos coisas que nos saibam bem. Orientarmo-nos por esse princípio. E esquecer um bocadinho todos os pressupostos. Por apetecer subvertê-los. E beber este moscatel (Venâncio da Costa Lima - Reserva 2006) antes de dar início.

Como se faz no Verão, mas em Outubro.





























Não deixa de ser curiosa, esta dissonância. Isto de ver imagens cheias de luz. Isto de haver pessoas na praia. Isto de até procurar um bocadinho o sol e depois não. Depois não dar. E termos de procurar sombra. E água. Coisas que amenizem, no fundo. E isto tudo em Outubro. E então, a mesa de um almoço de Domingo é cá fora na mesma. Para não virar costas ao sol. Mas dentro. Num lugar de vidro. Os ingleses chamam as casas de vidro dos jardins de "conservatories". Sempre achei curiosa, esta maneira de dizer uma casa de vidro. Por intuição ou "by heart", outra expressão que acho linda, até dá para perceber. Lugares que conservam. Ou que preservam. Ou que resguardam. Do sol impiedoso e dissonante de Outubro, por exemplo. Para a mesa num lugar que é destinado a conservar, a reinvenção de uma receita muito básica. Muito nossa. Mas de uma maneira um bocadinho minha. Porque imaginei que ficava bem juntar alho francês. E cenoura ralada. E azeitonas partidas em pedaços muito pequenos. Achei que podia correr bem, a minha reinvenção de Bacalhau à Brás. E sim. Acho que a realidade confirmou o imaginário. De vez em quando é assim. E ainda bem.

2 postas de bacalhau (usei congeladas) + 1 cebola média picada + 2 alhos franceses + 1 cenoura ralada + 5 batatas + 6 azeitonas + 3 ovos inteiros + azeite, sal, pimenta e coentros q.b.

Antes de tudo o mais, coze-se as postas de bacalhau. Daquela maneira que resulta em lascas infalivelmente perfeitas: desligar o lume depois de começar a ferver, esperar dez minutos e pronto. Reserva-se as lascas de bacalhau, sem desfiar, para que o resultado final não seja uma mistura seca. Depois, frita-se as batatas cortadas em palitos finos. Entretanto, pica-se a cebola muito finamente, corta-se os alhos franceses em rodelas finas e rala-se a cenoura. Leva-se tudo ao lume, com azeite e um pouco de sal. Deixa-se estar durante uns cinco minutos e junta-se o bacalhau e as batatas. Envolve-se com cuidado e acrescenta-se os ovos bem batidos. Envolve-se novamente e retira-se de imediato do lume. Mesmo antes de servir, a última verificação: um pouco de coentros picados, mais sal e pimenta preta moída na altura.
E pronto, fica pronta a minha reivenção num dia de sol. Depois é só procurar uma sombra e um copo de vinho branco muito fresco. Como se faz no Verão, mas em Outubro.

Precipitação.

 



 
Uma vontade enorme de água. É isso. Os dias quentes fizeram com que tivesse esta vontade súbita de água. E não adianta beber água. Não adianta água das outras formas. Queria vê-la a cair do céu. Mesmo que se mantivesse o calor todo. Mas que acontecesse água do céu. Acho mesmo que até seria melhor, se houvesse água com calor. Que ela se precipitasse e pronto. Que fosse uma coisa de precipitação sem mais. Uma palavra de que até gosto. Pela ressonância a impulso. Ou a uma forma qualquer de espontaneidade. Não sei. Sei que o costume é ser uma palavra que faz pensar em actos irreflectidos. Sem reflexão. O tipo de palavra que se usa para dizer que alguém fez uma coisa que não devia ter feito. A forma possível de amenizar coisas que não deviam ter sido feitas é esta. Precipitou-se. Houve precipitação. Uma humanidade profunda em todas as vezes em que alguém se precipita. Por ilusão. Por acreditar. Por se enganar, também. A parte boa da palavra é a de deixar margem para uma coisa muito simples. Dizer que não se pensou. Que houve precipitação. Como a que gostava de ver cair do céu. A tal ideia persistente de precipitação, por estes dias.
What the water gave me. Enquanto conduzia com vontade de água, esta música. Alguém a cantar aquilo que a água deu. E pronto. Posso não ter tido a tal água que queria. A precipitar-se do céu. Mas tive a ideia. Uma ideia muito etérea de água. E esta outra, assim que cheguei a casa.

Omolete de canónigos e cebola

6 ovos inteiros + 1 cebola pequena + 1 pimento doce + canónigos q.b. + azeite, sal, pimenta

Começa-se por se bater os ovos com um pouco de sal. Reserva-se e leva-se ao lume numa frigideira, a cebola picada e o pimento cortado aos cubos num pouco de azeite. Depois de uns dois minutos, acrescenta-se os canónigos. Quase logo a seguir, os ovos. Agora vem a parte complicada de fazer uma omolete (para mim, pelo menos:). Eu costumo fazer assim: deixo que os ovos vão cozinhando e quando houver consistência suficiente, "dobro" a omolete ao meio. E viro de um lado e do outro, pressionando ligeiramente. Assim que estiver no ponto, viro para o prato de servir, para não queimar. E basta uma salada. A deste dia foi só feita com alface iceberg. O nome fez-me pensar numa realidade fresca. Para acompanhar uma omolete. E aquilo da vontade de precipitação.
     

Para a minha mãe de cabelos claros e olhos verdes.






























Tinha prometido à minha mãe que hoje faria um almoço para ela. Como se um almoço pudesse ser todas as coisas que gostaria de lhe oferecer. Não posso todas as coisas. Mas posso isto. Fazer um almoço para a minha mãe. E pôr uma mesa bonita, com as flores de que gosta mais. A minha mãe. Que é tão forte. E tão bonita. Olhos verdes e cabelos muito claros. A miúda mais bonita do liceu. Era assim que se diz que se dizia. Mas anda um bocadinho frágil, a minha mãe forte e linda. A precisar de carinhos e de atenção. Mesmo a precisar de comida feita pela filha que nasceu primeiro. Num domingo de um sol que nunca foi possível em Outubro. Um calor que não é de Outubro. E então, escolhi fazer uma massa muito de casa. Com a receita de uma amiga que é assim uma espécie de mãe. E acho que não podia ter pensado numa receita mais acertada. Esta:

Macarrão Corso (que acabou por ser Provolone:)

Uma embalagem de macarrão + bacon cortado em cubos + quatro bifes de peru cortados em pedaços + raspa de duas cenouras + uma embalagem de cogumelos frescos + espinafres q.b. e coentros q.b. + dois pacotes de natas para culinária + queijo Corso ou Provolone + azeite, sal, leite e pimenta q.b.

Primeiro coze-se o macarrão em água com sal e azeite. Retira-se e passa-se por água bem fria e corrente. Reserva-se. Num tacho, coloca-se os pedaços de peru, o bacon, a cenoura e os cogumelos em azeite. Passados uns minutos, acrescenta-se um pouco de sal e de vinho branco. Deixa-se cozinhar, até que a carne esteja pronta. Acrescenta-se as natas, depois a massa, os espinafres e os coentros. De seguida, a massa. Envolve-se tudo muito bem e, se necessário, junta-se um bocadinho de leite. Antes de colocar no pirex, rectifica-se os temperos e acrescenta-se sal e pimenta. Finaliza-se com queijo Provolone e vai ao forno durante vinte minutos.
O queijo devia ter sido Corso, mas não o consegui em parte nenhuma, por isso teve de ser assim. Com uma adaptação. Mas a minha mãe disse que estava muito bom, o almoço adaptado. E que lhe tinha sabido bem estar à minha mesa com orquídeas brancas.

Coisas para que ele seja feliz.



























É declarativo como eu. Mas menos temperamental. É onírico. Mas racional e equilibrado. Não é assim de impulsos como eu sou. Está sempre a dizer que é preciso calma. E pensar bem antes de falar. Ensina-me coisas desde que o conheço. Embora diga que aprendeu comigo a lição mais bela e difícil de todas. Não sei. Essa e outras lições. Mas sei que quis sempre ser melhor por causa dele. Há muito tempo que ando a tentar isso de ser melhor. Por gostar muito das coisas que ele é. Das coisas que são ele. Por gostar que goste de pedras. Tanto, que quando era pequeno as acumulava. E a pedaços de ferro. E que fazia edificações com pilhas de livros e revistas e listas telefónicas. Qualquer coisa não dita em relação a representações possíveis de solidez. Depois descobriu o imaterial. Depois descobriu a filosofia. Depois descobriu que havia livros. E é assim, a imagem dele. As estações mudam e os anos passam. Mas a imagem persistente é a de estar sentado a sublinhar um livro. Diz que se lê duas vezes, assim. Coisas que eu não percebo muito bem. A minha inteligência intuitiva e emocional pode não gostar de ler ensaios filosóficos. Mas gosta de o ver a ler. E está tudo bem. No intervalo disso tudo, acabamos por coincidir.
E aprendi com ele a olhar demoradamente para as coisas que são nós. A saber de olhos fechados que uma gravata é de seda. E que os sapatos são uma espécie de declaração. E que os chapéus Borsalino são os mais clássicos. E o aroma. Também o sei de olhos fechados. Sei que é assim como uma água de colónia muito antiga.
Isto tudo porque fiz coisas outra vez. Porque foi o aniversário dele outra vez. Tão bom haver coisas que podem ser outra vez. Como mais um ano de vida. Assinalado com o livro. Em forma de bolo. E coisas que são ele.  E outras, silenciosas. Antes de estar aqui, o dia 30 de Setembro era o mais triste de todos. Eu não fazia parte do dia 30 de Setembro. Só podia ficar triste à distância. E imaginar todas as coisas que fariam parte. Se eu fizesse parte. Foram tantas, as coisas que imaginei a sós e à distância. Mas estou aqui agora. E agora, posso tudo o que havia no imaginário. Todas as surpresas. Todos os presentes. Todas as refeições. Coisas para que seja feliz. Só para que seja feliz. Não é preciso mais nada, quando é assim.

PS: Obrigada à Cristina, da Casa dos Vouguinhas, por mais uma obra de arte transitória. Pelo bolo que o fez feliz:)

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