Isto.



























Também acontece isto. Isto de querer estar a sós. Isto de pôr uma mesa só para mim. Isto de fazer uma refeição a pensar em mim. Parto ao meio os dias de trabalho e desapareço um bocadinho. Para continuar a gostar de tudo o que me é exterior, preciso de lembrar a circunstância irredutível. Aquela de estarmos sós. De ninguém conseguir sentir o que sentimos. Pensar o que pensamos. Viver o que vivemos. Não preciso assim de muito tempo para me lembrar dessas e de outras coisas. Basta uma hora de almoço, a maior parte das vezes. Para estar a sós. E não é por querer recusar o mundo ou as pessoas. Nem sequer por uma ideia frágil de refúgio. É por gostar muito do mundo. E das pessoas. E das coisas todas que acontecem no que está fora de mim. É só para continuar a gostar. Gostar com a verdade possível à nossa circunstância partilhada. A de estarmos sempre sujeitos a falhar. Uma e outra vez. Uma e outra vez.
Ainda assim, este reduto. Ainda assim, esta possibilidade. A de marcarmos um almoço connosco. E estarmos em silêncio. A sós com cada um dos nossos silêncios. Reservarmos tempo para nós. Reservarmo-nos do que houver. Para depois voltarmos ao exterior. E irmos com mais para o que está lá fora. E lá fora, às vezes magoamo-nos. Às vezes caímos um bocadinho. Outras vezes não. Estamos só bem. Só bem, que não gostamos de coisas que ofuscam. Que nos alheiam desta verdade silenciosa. A de sabermos que estamos sós. Mas que até vamos sabendo cuidar de nós. Para podermos estar mais e melhor para os outros que são nós um bocadinho. Ou um bocadinho de nós. Cada fragmento escolhido de solidão pode lembrar isto. E eu gosto de não me esquecer de algumas coisas. De algumas coisas fundadoras. Uma espécie de exercício de lucidez, cada um dos almoços a sós.

Nevermind.






























Dias com sol. Lá fora, muito sol. E uma casa fresca. De pedras com memórias dentro. Mas assim, com tanto sol, é quase um imperativo que a mesa seja lá fora. Enquanto houver sol. Que não magoa, de impiedoso. Que faz com que apeteça prolongar. A mesa. E depois da mesa. Uma tarde inteira a prestar um culto luminoso. A um dia de sol. Que começou no momento em que a mesa surgiu. A decisão imperativa. Depois os pratos. Depois os talheres. Depois flores brancas oferecidas pelo meu filho. Depois um copo azul. Só por ser lindo e merecer estar ao centro. Tão imediata, a mesa imperativa que prestou culto a um dia de sol. Quando a mesa está posta, a outra decisão imperativa. Esta:

Bacalhau gratinado com espinafres

2 lombos de bacalhau (usei congelados) + metade de um pimento vermelho + 2 cebolas médias + espinafres q.b. + azeite, sal, vinagre e noz moscada + molho béchamel + queijo mozzarella.

Leva-se o bacalhau ao lume e deixa-se começar a ferver. Assim que começa, desliga-se e deixa-se estar na água durante dez minutos. Assim, as lascas ficam perfeitas. Reserva-se e faz-se o refogado. A cebola às rodelas, o pimento em cubos, azeite e um pouco de vinagre. Quando a cebola estiver translúcida, junta-se as lascas de bacalhau e envolve-se com cuidado (para não desfiar). Junta-se o molho béchamel e os espinafres. Envolve-se tudo muito bem e acrescenta-se sal e noz moscada. Coloca-se num prato de ir ao forno e cobre-se com o queijo. E vai a gratinar. Serve-se acompanhado com batatas fritas em palitos.
Nevermind é por causa da música. Aquela que chegou há vinte anos e mudou tudo. Nos dias de sol, apeteceu recuperar os Nirvana. In bloom. Something in the way. E mais. Nevermind.

Nunca. E um nome:)





























Nunca tinha comido chili. Nunca percebi ao certo porquê. Mas nunca tinha provado. No entanto, dizia que não gostava. Estranho. Dizermos que não gostamos de uma coisa antes mesmo de a termos provado. E embora não consiga realizar muito bem porquê, a verdade é que andei estes anos todos sem saber a que sabia chili. Uma ideia vaga. De ser picante. Intenso. Pesado. Mas era uma ideia. Sem nunca ter tido direito a concretização. Mas aconteceu. Aos trinta e um anos, descobri finalmente a que sabe chili:) Muito tempo, para que uma ideia resultasse em concretização simples. Mas sim. E por ter sido feito pelas mãos de uma amiga. Que chegou à minha porta com uma caixinha que me soube a comida de mãe. Não era nada perturbador, o sabor. Não era assim como eu tinha antecipado. Era comida quentinha de mãe, afinal. E então, agradeço-lhe poder dizer que já provei chili. E entretanto, até fui capaz de reproduzir a receita. Sem deixar que o sabor fosse com aquela intensidade spicy que fez com que estivesse tanto tempo a dizer nunca:) Dizer nunca é muita coisa. É muito definitivo. E as coisas definitivas não existem. Deixarmos de dizer nunca ensina-nos coisas muito elementares. Coisas assim como dizer talvez em vez de nunca.

A receita:

500 gramas de carne picada + tomate cortado em pedaços (2 ou 3) + 2 pimentos padrón + 1 cebola picada + 1 lata de feijão preto + azeite, vinho branco, sal e pimenta vermelha moída.

A cebola, o tomate e os pimentos (eu fui prudente e retirei as sementes, para os tornar mais inofensivos:) em azeite. Deixa-se um bocadinho ao lume e junta-se a carne picada, o vinho branco (um copo meio cheio) e o sal. Fica ao lume o tempo suficiente para que a carne fique cozinhada (15 minutos). Junta-se água, se for necessário e o feijão preto. Acrescenta-se sal, se for preciso e a pimenta. Pode servir-se com tortilhas ou com arroz branco. Ou sem nada. É substancial o suficiente para ir à mesa sem companhia, o chili que eu nunca tinha provado:)

O nome é o do gatinho que não tinha isso de um nome. Agora sim. É Milky. E acho que decidiu mesmo ficar por aqui. E responder pelo nome. Milky.

Da cidade feita de luz e de água.






























Uma das minhas cidades. Eu sei que há outras. Umas onde estive. Outras onde falta estar. Muitas, estas últimas. Com mais ou menos arte. Com mais ou menos possibilidades de beleza. Com mais ou menos coisas a acontecer. Mas eu acho que o céu é diferente em Lisboa. Acho que a maneira como a luz está por todo o lado é diferente. Não deve ser assim nas outras cidades. Mesmo que a luz dessas cidades seja linda. Lá é mais. Para mim, é mais. É luz com água. Até pode acontecer andarmos em ruas de onde não se vê a água. Mas a luz faz com que cheguemos lá. A um lugar qualquer onde se possa ver a água. Ou adivinhar a luz líquida que não há nos outros sítios.
Quer ser sobre a luz de Lisboa, o texto de hoje. Mas também sobre lugares que ficaram. E o mais importante: fragmentos partilháveis do que foi sentido e pensado. Nos lugares que acolheram o que se pensa e sente. E então, um restaurante perto da água. O Bica do Sapato. Um lugar que para mim significava um tempo que me era anterior. Um lugar que o conhecia sem mim. Era importante levar-me a um lugar onde tinha existido sem mim. Aconteceu, então. E correu tudo bem. Com a comida. Com a maneira como se é acolhido. Com a sala das cadeiras diferentes umas das outras. E o silêncio ante a água lá fora. A ver a luz a cair na água que havia do outro lado do vidro. E saber que há coisas que permanecem. É do que me lembro mais. Das cadeiras diferentes da sala de jantar. Do rio. Dos minutos que aconteceram antes de a luz dizer até amanhã. E de mais coisas que são assim como a água e a luz. Silenciosas.
Depois, um edifício alto. Bem no núcleo. Um quarto no último andar de um hotel na Avenida da Liberdade. O Tivoli. Que é a memória de uma conversa que se prolongou até ao início do dia seguinte. Com chá e doces. Não me lembro assim de muitas coisas do Tivoli. Daquelas que são para escrever num blog deste género. Vou ter de voltar lá. Para poder dizer melhor aquele lugar. Só ficou mais um bocadinho de luz. Porque acordei cedo, a tempo de a ver acordar na cidade de que gosto muito. E sim, era um dia de sol. A futurologia possível, a dos hotéis: antecipar um dia de sol.
A música dos Little Dragon faz-me regressar à cidade da luz mais bonita. E anda comigo de carro todos os dias:) Hoje fica aqui. Para fazer parte, também.

Amanhã.





Amanhã já vai ser a sério. Aquilo de ter um filho na escola primária. A aprender letras e números. Depois a aprender que se pode combinar as letras e os números. E que são infinitas, as combinações. Uma forma de introduzir o infinito, creio. Os números de 1 a 10 e saber que a partir desses, se pode ir até ao que não se consegue medir. Ou pesar. Ou contar. Ou dizer. Tudo o que o espera. Que é incalculável. Incontável. Imponderável. Tudo aquilo que o aguarda. Num mundo que já não vai ser bem o que foi até aqui. Por haver uma dimensão muito livre que se perde quase irremediavelmente.
Não sei. Se vou saber sempre como estar à altura. Não sei se vou conseguir sensatez. Para que resolva sozinho as coisas que se devem resolver a sós. Não sei. E acho que prefiro pensar que posso não saber. Por gostar mais da ideia de mães que acham que podem falhar. Ou que dizem que não é fácil. Que de vez em quando custa. Não saber, por exemplo. Como na noite em que ele nasceu. O pensamento repetido, que não deixava dormir. Pensar que iria ser sempre mãe dele. Que tudo o mais estava sujeito a alterações. Mas não aquilo de ser mãe. Com isto, o medo. Da eventualidade de não ser capaz. Pode acontecer não sermos capazes, às vezes. Uma espécie de lucidez maternal, creio.
Mas sei algumas coisas pequenas. Coisas que até podem não ser muito importantes. Como saber que posso fazer uma sopa quentinha todos os dias. Que pelo menos isto há-de ser como foi até aqui. Que há determinadas coisas que permanecem. Como haver sopa feita pela mãe. E a história da Bruxa Mimi à noite, mesmo antes de dormir. À espera que ele saiba ler. A história e o que fica aqui. Como a receita de uma das sopas de que gosta mais:

 Creme de Courgettes

4 courgettes + água + sal + azeite

Corta-se as courgettes (sem descascar) em pedaços pequenos e lava-se muito bem em água corrente e fria. Coloca-se numa panela com um pouco de azeite e deixa-se durante um minuto. Acrescenta-se água suficiente para cobrir as courgettes e sal. Tapa-se a panela e deixa-se ferver. Quando começar a ferver, deixa-se estar uns quinze minutos. Depois, é só transformar tudo num creme verde-claro de que as crianças gostam muito:)

Havia mais Verão.



























Afinal ainda havia mais Verão. Nós é que não sabíamos.  O sol é inclemente como na altura do ano em que é mesmo Verão. Respirar custa um bocadinho. E apetece roupa dos dias de sol. E não dá. Porque estes dias não são bem como os outros. Aqueles em que a única coisa realmente importante é haver sol. Não dá para vestidos curtos com flores. Ou sem alças ou sem costas. Estes dias são dias de roupa séria:) Exactamente porque é Setembro e não Julho ou Agosto. Por estes dias de roupa séria que não é às flores. Por estes dias em que as pedras estão quentes. Mesmo à noite. Dias que são quentes mesmo à noite. Chegar a casa sabe melhor. Porque ainda há luz quente para ir ao jardim. Porque apetece estar em silêncio um bocadinho. Concedermo-nos um bocadinho de silêncio no final de um dia em que não houve nada disso. E só aí pensar no jantar. Como se fosse surpresa ou dádiva. Apetecia massa. E apetecia que fosse mesmo leve. Mas também apetecia que estivesse envolvida num molho aveludado. E com lascas de queijo, logo a seguir aos orégãos. Para pensar melhor e mais fresco, um espumante concebido pelo gosto de uma mulher. Que é assim como uma mulher: doce e ácido ligeiro. As duas coisas numa garrafa. As duas coisas numa mulher. Doçura e acidez. Na dose certa, para não se anularem. 3B, Filipa Pato. Como diz no rótulo: sem dosagem, sem maquilhagem. A acompanhar isto:
Ravioli com molho de tomate e orégãos

Uma embalagem de ravioli frescos + 2 tomates coração-de-boi + metade de um pimento verde + 8 cogumelos frescos + 1 cebola média + sal, azeite, farinha Maizena e orégãos q.b. + lascas de queijo (usei Zamorano, mas pode ser o que nos apetecer).

Faz-se um refogado simples e rápido com a cebola, o pimento, os cogumelos e o tomate cortado em pedaços. Junta-se água até meio da panela onde for feito o refogado e deixa-se ferver. Então, junta-se os ravioli e deixa-se cozer durante uns cinco minutos (era o que dizia na embalagem:). Bem no final, junta-se o sal e um pouco de Maizena, para que o molho fique ligeiramente espesso. Quando se transfere para o prato de servir, os orégãos e as lascas de queijo.

E até que sabe bem, isto de ser Julho e Agosto em Setembro:).

A mesma coisa, mas palavras diferentes.



Começou assim. Com a ideia de sempre. A de que nunca me esqueço, assim que entro numa sala de aula. Ensinar o respeito pelas palavras. Procurar dizer que podemos fazer o que entendermos delas. Por serem coisas. Por poderem ser pedras ou almofadas contra a dor. Por poderem magoar ou confortar. Por poderem ensinar que o medo custa menos quando nos esforçamos por lidar com ele. E que sim. Que são para nos dizermos. Que são para rebater e argumentar e demolir, às vezes. E perigosas. Também podem ser perigosas. Daí uma parte do respeito. De tão irreversíveis e livres que são. As palavras que são assim. Poderosas. Tanto, que podem mudar o mundo. Pelos mundos interiores que encerram. Os mundos interiores que se sentaram ontem numa sala levaram de lá esta ideia. A ver se fazem coisas boas com as palavras diferentes que há em cada um. A ver se sim.

NB: A propósito de palavras e das coisas que elas podem significar, deixo a referência a um seminário aberto, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, na Universidade Nova de Lisboa. No próximo dia 27 de Setembro, "Estranhar Pessoa". E ouvir palavras. Em torno da ideia de decadência nacional em Fernando Pessoa. Sebastianismo e Quinto Império. E o mais que nunca se consegue antecipar.

Continuar e uma mesa cor de infinito.





























Não é uma data que se escreva sem mais. Sem olhar bem para os números. 11.09.11 
Dez anos desta data. O imponderável da barbárie. E não dar para apagar. Nem as imagens. Nem o silêncio incrédulo dos directos daquele dia. Por sabermos que nunca se está preparado para descrever a barbárie. Que de vez em quando, assume dimensões que são assim. Imponderáveis. E então, a melhor das respostas à maldade: continuar. Foi assim que aconteceu no país que é capaz do melhor e do pior. Continuar. Com uma cicatriz, mas o mundo foi capaz de continuar.
Assim. Os gestos de hoje foram marcados pela memória de há dez anos atrás. E quiseram ser uma negação possível. As cores que estão na memória são difusas. Oscilam entre o cinza e o negro. Figuras humanas em queda. Lenços brancos nas torres de aço. Vontade de decalcar o infinito. A mesa de hoje queria isso. Pensar na cor que mais é isso do infinito. Que é tudo aquilo que não se consegue medir. Ou pesar. Ou dizer. O azul é isso tudo. E o mais que não se consegue escrever. Azul à mesa, então.
E pensar em amanhã. No sentido mais imediato do termo. Amanhã é dia de começar. Nunca é bem recomeçar. Porque os pontos de partida mudam todos os anos. Voltar à sala. Voltar aos esforços para chegar até aos que estão lá, transitoriamente dentro de uma sala. Este ano, com um dado que não havia antes. O gatinho sem nome que não desiste de andar por aqui. A parecer ter um lugar preferido no jardim. A aproximar-se, agora. Já tolera carinhos. Segue os meus passos, enquanto ponho a mesa. Ou fica quieto a olhar, quando os meus passos não andam de um lado para o outro. De vez em quando, pede atenção. E eu faço o que ele pede. Levanto-me e renovo o leite na tacinha que lhe quer dar um nome. Se calhar, era melhor arranjar-lhe um nome. Já anda por aqui há tempo suficiente para não ser só gatinho:) Mesmo que não goste assim muito da música interrompida de há dez anos atrás. Ouvida hoje até ao fim. "My own summer". Deftones.

Não obstante, Tarte de Chocolate e Banana.

























Tenho pensado persistentemente numa coisa. Que nem é assim muito elaborada. Bem básica, até. Precisamos de coisas boas. De tudo o que nos fizer bem. De cada possibilidade de beleza. De cada boa palavra. De cada carinho que nos for feito. Angustiante, por estes dias, não perder a noção do mundo. Por mais que não se deva perder essa noção, a verdade é que algo que é sempre maior do que nós parece estar em curso. Tudo é colocado como facto consumado. Ou como iminente. E uma enorme quantidade de palavras que não significam. Que nunca querem dizer muito bem o que designam. Por mais que até saibamos quais são as perigosas, as ambíguas. Era outra coisa diferente. Não era bem assim. Percebemos mal. As contas de uma empresa estão em ordem, mas as pessoas que lá trabalhavam foram despedidas. Um homem sozinho pode pedir emprestados 1000 milhões de euros. Para comprar acções. Não para criar empregos. Não para gerar riqueza para um todo. Embora eu não tenha nada contra o lucro próprio. É bom que haja isso. Devia haver mais. Mas é que os tais 1000 milhões foram aplicados em especulação. E hoje, as acções que custaram 1000 milhões valem 73 milhões. Creio que basta fazer contas. É uma aritmética muito básica. Como as coisas em que tenho andado a pensar com persistência. Naquilo de precisarmos de coisas boas. Mas nisto também. Porque esta factura terá de ser paga. E o pior de tudo é que nós sabemos a quem vai ser apresentada. E não, não é ao senhor que vale menos do que muitos de nós. Por valer cerca de metade do que deve. Mas isso não será problema dele. Será mais de quem emprestou.
E então, uma coisa menos habitual em mim. Fúria. Como no poema da Sophia. O que é contra os demagogos. Ela até disse que era com mais. "Com fúria e raiva". Faz falta poesia desta, também. Fazem falta palavras que façam frente. Que obriguem cada um dos que as desrespeitam todos os dias a pagar o preço. Que é usar as palavras certas. As que querem mesmo dizer as coisas. As palavras fortes, inequívocas. E dizer que "roubaram" e não que "houve um desvio". E dizer que "mentiram" e não que "faltaram à verdade". E dizer que "fugiram" e não que se "retiraram para o estrangeiro". Apetecia limpar tudo. E olhar finalmente para algo que fosse limpo. Acreditar. Uma resposta possível às "inverdades". Acreditar.
A receita de hoje é uma forma de acreditar. Na possibilidade de um dia doce. Na possibilidade de felicidade. Exequível. E saber que se chama só "Tarte de chocolate e banana". Não há nada a perturbar. Nada que não seja a realidade que designa. Tarte de chocolate e banana, então.

4 bananas (meio maduras) + meia lata de leite condensado + 1 folha de gelatina branca + 1 pacote de bolachas Maria + 100 gramas de manteiga + metade de uma tablete de chocolate para culinária + 1 pacote de natas frescas e raspas de chocolate.

Faz-se a base da tarte com as bolachas moídas, a que se acrescenta a manteiga derretida e um pouco de leite. Cobre-se a base de uma forma (com fundo amovível) com a mistura de bolacha, espalhando-se bem. Leva-se ao frigorífico. Depois, tritura-se as bananas com uma varinha mágica (ou com outro meio mais sofisticado:). Entretanto, derrete-se o chocolate com uma colher de sopa de manteiga e junta-se o leite condensado. No final, a folha de gelatina previamente hidratada em água fria. Adiciona-se a mistura de chocolate às bananas trituradas e envolve-se tudo com cuidado, até que o chocolate se integre. Espalha-se por cima da base de bolacha e leva-se ao frio. Pouco antes de servir, cobre-se com natas batidas com uma colher de açúcar. E fica pronta, a tarte que é aquilo que dizem as palavras que lhe deram nome. De chocolate e banana. Não obstante a outra palavra. Fúria.

No primeiro sábado de Setembro.

































O mês de Setembro é assim. Começa com um aniversário. E continua assim. Até ao último dia de todos. Num sábado de sol indeciso, foi o dia de um amigo. Dedicado a ele. Muitas pessoas juntas a lembrar isso mesmo. A fazerem uma viagem para irem para junto dele. Só para lhe dizerem que é mesmo bom que exista. Num lugar que fica algures no Douro. Uma casa que é uma segunda morada. Linda e afectuosa, como são as segundas moradas. Lugares que são quase sempre cenário de celebrações deste género. Ou de férias que deixam saudades daquelas que não se consegue mitigar. Por se saber interiormente que se sente a falta de coisas que já não podem ser vividas. Não com aquilo com que foram vividas. Aquilo de ser uma coisa muito inicial. Impossível de reinventar.
Foi muito bonito, o final de tarde ali. Foi muito bonito assistir ao declinar do dia nas vinhas já em cores de fogo. E a noite. Com risos de crianças. São tantas as crianças nas festas do João. E é a elas que cabe a anunciação dos parabéns. Numa corrida pelas mesas. Como se lembrassem aos adultos que agora é que é. A parte mágica da festa é a de cantar os parabéns. Pela luz. Por estarem todos a cantar só por causa de uma pessoa. Há alguns anos que o cenário deste aniversário não era aqui. E foi tão bom que tenha sido assim. Que este ano tenha sido na segunda casa de uma família em que todos os irmãos têm olhos azuis:) Já com bebés e crianças. Também de olhos azuis. Uma marca indelével da família que tem uma casa amorosa no Douro. Um lugar que só oferece felicidade. Que está ali. Fechado durante muitos dias. Para ser vivido indefinidamente. Pelos irmãos dos olhos azuis. E pelos amigos dos irmãos dos olhos azuis. Que também gostam muito de existir ali. Porque se sabe que há coisas muito bonitas que vão ficar registadas. Eu sei que sim. Que este aniversário do João significa a vida muito recente de uma bebé. Vestida com um capuchinho vermelho. Muito loirinha. De olhos muito cheios de água azul. Bagos de uvas, dourados pelo sol de Setembro. Apanhados das vinhas. Uma sensação de criança. Recuperada. Pensar que daqui a uns anos, o meu filho e as outras crianças que brincavam juntas iriam reunir-se ali, também. A pretexto de aniversários. Ou sem nenhum pretexto. Só para estarem todos juntos. Como estiveram num sábado de Setembro. Que soube a uns doces de côco e de chocolate que são de perdurar. A ver se a minha tentativa de recriação da receita que me foi dada, me sabe ao sábado que me fez bem.

Aniversário em dia de chuva.





























O mês da luz mais suave começa com um aniversário. No dia 1, uma amiga que está sempre, fez trinta anos. E assinalou-os com carinho. Dedicou-se a preparar um jantar para acolher. Pôs uma mesa branca. Comprou flores frescas e colocou-as numa jarra. E fez uma tarte muito leve. Que foi o que nos recebeu, mal chegámos. Isso, um sorriso atarefado e uma casa preparada para receber. Para agradecer. À Pipinha. Que faz parte deste universo condensado. Obrigada pelo jantar num dia de chuva e de vento. Obrigada pela tarte leve que me fez bem num dia que foi longo. Pela imagem cálida de uma jarra com flores frescas. Pela conversa partilhada a uma mesa branca. Coisas assim, a que se quer corresponder. Com um presente que é uma narrativa. Composta pelo imaginário de uma mulher que descreve as mulheres de uma maneira muito particular. Faz com que sejam fadas. E demónios que atormentam existências. Mulheres de gelo que determinam que as vidas que se atravessarem no seu caminho nunca mais sejam as mesmas. Uma forma possível de agradecer. Com as mulheres da Ana Teresa Pereira. E com isto. Palavras juntas a tentarem dizer a dádiva de uma vida. E uma receita para partilhar. Para que a memória de um jantar não seja só a circunstância de um dia de chuva e vento. E que fique cristalizado assim. Com uma receita dela. As flores brancas que comprou para assinalar trinta anos de vida. E a luz branca da casa branca da minha amiga.

Tarte de bacalhau dos trinta anos da Pipinha:)

400 gramas de bacalhau desfiado + 2 colheres (de sopa) de margarina + 1 cebola média (bem picada) + 3 colheres (de sopa) de farinha + meio litro de leite morno + 1 colher (de sopa) de salsa picada + sal, pimenta e noz-moscada + sumo de meio limão + 1 embalagem de massa folhada.

Refoga-se a cebola com a margarina e junta-se a farinha e o leite alternadamente. Depois de acabarem as duas coisas, junta-se o bacalhau, a salsa e os temperos (sal, pimenta e noz-moscada). Deixa-se "borbulhar" durante uns minutos, acrescenta-se o sumo de limão, rectifica-se os temperos e coloca-se na massa folhada. Vai ao forno até que fique dourada (cerca de vinte minutos). E na hora de servir, basta acrescentar duas coisas: uma salada verde e um vinho claro e fresco.  Mesmo num dia de chuva.

David Vann. A ilha de Sukkwan.


























Cortante. Avassalador. Tenso. Difícil. Do género de ter de parar para respirar. Mas depois ter mesmo de se ler rápido. Li-o em menos de vinte e quatro horas. A abdicar das primeiras horas de sono de Setembro para poder ler mais. Já tinha acontecido com outros livros. Só os livros verdadeiramente bons têm este efeito. Aqueles que não conseguimos adiar. Que não são mornos. De deixar para depois. Fica-se imerso. Uma narrativa em carne viva. Em que se adivinha uma realidade crua. Porque as boas narrativas devem ser assim. Devem aproximar-nos da realidade. Mesmo que nos sejam distantes. Mesmo que dificilmente nos imaginássemos na pele das personagens. Com a distância que nos permite a nossa narrativa irrepetível. Mas as personagens são feitas de pedaços vivos que vivem em cada um de nós. Adormecidos, muitas vezes. Mas os bons escritores são assim. Capazes de invocar os espíritos mais despidos das pessoas reais. E então, sim. Estamos mesmo no mais inconfessável traço. Naquilo que há de mais recôndito e impartilhável. Os bons escritores fazem isso. Não são de efabulações. Não nos servem os lugares-comuns das pessoas que são lugares-comuns. Olham-nas para além disso tudo. E depois dizem-nos assim: era possível isto. Por mais monstruoso ou distante que seja. Era possível isto. Era possível a desorientação. Era possível não saber o que fazer. Era possível fazer tudo errado. E dar cabo de tudo. No limite. Uma história que é nos limites. Contada por um escritor que carregou durante anos a culpa do suicídio do pai. Por lhe ter dito que não. Que não iria passar uns dias a uma ilha com ele. Durante anos, a culpa. Durante anos dizer que o pai tinha morrido com um cancro. E a tragédia de achar que todo o amor que sentia pelo pai não tinha sido suficiente para que ele não fosse ao extremo. Que havia só aquele não irreversível. E então, escreveu um livro. E tentou publicá-lo. Dez anos longos até que sim. Dez anos de recusas. De cartas formatadas a dizer que não. Que era mais urgente (e rentável) pedir a uma figura qualquer para escrever um livro sobre dietas ou sobre histórias de amor que são aquilo dos lugares-comuns. Tantos livros. Há tantas páginas por aí. Que não fazem diferença nenhuma. Que existirem ou não não muda nada. Mas não estas. Não as páginas em sangue de um escritor assim. David Vann. A Ilha de Sukkwan.
Setembro começou assim. A ler como se isso fosse a coisa mais importante de todas. Como se nada fosse mais determinante que não chegar ao fim de um livro.

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