No jardim.






























Quando acontece não estar aqui, aquilo de que sinto mais falta é do jardim que respira lá fora. Porque não consigo encontrá-lo em parte nenhuma, quando não estou aqui. Mesmo que veja jardins mais bonitos ou mais disciplinados. Acho que o personifico. Aquilo de lhe atribuir características que são humanas. E assim, os arbustos disciplinados são o que há em mim de muito racional. As heras que estão por todo o lado acabam por ser o que é imponderável ou impulsivo. Lá fora, as árvores crescem livres. E acolhem vida todos os anos. De pássaros que são livres como as minhas árvores. No regresso, há sempre vontade disto. De uma espécie de convocatória telegráfica. "Estejam cá às oito. E um beijo:)" E então, jantar lá fora. Perto das árvores que acolhem. Das heras indisciplinadas. E dos arbustos racionais. Este domingo à noite foi assim. Copos a tilintar. Pratos circulantes. Nada de lugares marcados. Almofadas e velas. E amigos. A graça de ter amigos no meu jardim. Que recebe como se fosse gente. Ainda que esteja silencioso. A respirar. Quando já é de noite. E se ouve a vida a acontecer. A pretexto de um jantar. Muito leve. Salada de endívias, maçãs e nozes. Bolos salgados. Sopa que conforta em tigelas pequenas. E uma tarte de cebola que foi feita pela primeira vez. Para receber amigos. Depois de ter estado longe do meu jardim.

Tarte de cebola

Uma embalagem de massa quebrada + 3 cebolas médias partidas às rodelas + metade de um pimento vermelho + três tiras de bacon fumado + queijo mozzarella + sal, azeite e pimenta.

Antes de tudo o mais, abre-se a embalagem da massa, para ir respirando. Parte-se depois as cebolas, o pimento e o bacon e leva-se ao lume numa frigideira. Com azeite, sal e pimenta. Salteia-se ligeiramente até que a cebola fique translúcida. Retira-se do lume e estende-se a massa numa forma de fundo amovível. Pica-se com um garfo e coloca-se o salteado. Leva-se ao forno. Quando a massa começar a alourar, acrescenta-se o queijo mozzarella e deixa-se estar até gratinar. Serve-se quente. Acompanhada da salada de endívias e maçãs que eu me esqueci de fotografar:)

Espuma.

































Hoje não era bem isto. Mas há aquilo. Aquilo de os dias passarem. De acontecerem e deixarem coisas que têm mesmo de ser guardadas quando acontecem. E não depois. Foi assim, o dia que aconteceu hoje. Que foi para ir ao encontro da pessoa que escolhi para segunda mãe do meu filho. Uma coisa séria, essa de dizermos a alguém que confiamos a esse ponto. Que se deixarmos de existir, queríamos que fosse mãe por nós. Um almoço cheio do mar que enche uma das imagens. Em Espinho. Onde não ia há anos. E o mar foi o mesmo de sempre: lindo. Visto de um restaurante que gostei mesmo de saber que existe. Chama-se Barco Boador. Assim mesmo. Não é gralha:) Ligeiro, cheio de coisas que lembram o que parece óbvio. Que é um lugar de mar. Uma parede inteira com destroços de barcos. Cordas de navios numa outra. Candeeiros que já iluminaram barcos. E comida que foi etérea como o azul todo que havia ao olhar em frente. Sopas com coisas do mar. Revueltos com coisas da terra. Massa fresca com legumes. E um doce a combinar chocolate e banana. Soube a isto, o almoço com a segunda mãe do meu filho. A ver o mar. A demorar os olhos nos edifícios de uma cidade que já significou muitas coisas. E que se reinventa em algumas. Mas em suspenso, em coisas que não há meio de se reinventarem. A Estação do Vouguinha. Com as janelas tapadas. Abandonada, a estação onde tantos chegavam em busca de mar. Ainda há mar. Ainda houve a possibilidade de mais um dia de Verão pleno para o meu filho. Ainda a tempo de mais um mergulho. A lógica das crianças é azul coral. Basta um bocadinho de água para serem felizes. Mesmo que o Outono comece a dizer que está na hora. Que foi muito bom. Mas que agora é a vez dele. Que há cores à espera. Que os frutos precisam de ser colhidos. Antes que venha o frio irreversível que nos faz ter saudades de dias assim. Azuis. Fica a espuma de um dia azul. Para dizer adeus à Rita. Para longe. Um ano longe. E uma voz que até à volta há-de ser o dia azul que foi hoje. Adéle. Someone like you. Que vai correr tudo bem lá longe. Sei que sim.

Regressar.




























Gosto das duas coisas. De desaparecer. E de voltar. Muito das duas coisas. Talvez por isso nunca suporte muito tempo longe de casa. E não é que seja uma coisa de rotina. Ou por sentir falta de coisas que há aqui e que não há lá fora. E então, regressar sabe sempre a coisas de sempre. Mas com coisas que não havia antes. Porque antes não havia os lugares e as pessoas e as coisas que foram vividas entretanto. Por isso, volta-se diferente. E eu gosto muito de pensar que melhor. Que voltamos melhor. Nada de muito elaborado. Ou fora do comum. Normalíssimo, até. Mas as coisas que há aqui. A luz que só há aqui. O vento que já é de Outono. O calendário até pode dizer que não, mas eu acho que sim. Que já há qualquer coisa de Outono. Talvez na maneira como a luz declina, ao fim do dia. Talvez na maneira como se sente o vento que já é da altura do ano em que as cores são em tons vivos pré-morte. Cores a antecipar a morte temporária do Inverno.
O meu regresso soube a doce de figos. Um doce que não foi feito pelas minhas mãos. O doce de figos foi uma boa-vinda. Da minha Dª Maria José. A pessoa que me ajuda a manter a ordem aqui. Que cuida da minha casa comigo. E que fez um doce de figos delicioso na minha ausência. E assim, num destes dias, a minha Dª Maria José acordou-me assim. A dizer que havia um frasco enorme de uma coisa que significa coisas boas. A tempo de pequeno-almoço. Coisas ditas assim. De uma maneira doce. E com uma luz que já é de fim de Verão. Está quase. Quase o fim do Verão lá fora.
Ela deu-me permissão para partilhar a receita do doce que me soube a regresso. E que eu agradeço. Por ter sido doce, o regresso.

1 quilo de figos (não muito maduros) + 1 quilo de açúcar + sumo de meio limão.

Primeiro, faz-se uma calda com o açúcar. Até atingir ponto de pérola. Quando acontecer, junta-se os figos com cuidado e deixa-se até a calda chegar a ponto de fio. Retira-se do lume e espreme-se o sumo de meio limão. Deixa-se arrefecer e coloca-se em frascos.
Este doce é bom de todas as maneiras. Sabe bem à mesa de pequenos-almoços ensonados:) e como sobremesa, quando acrescentado a gelado de natas ou de baunilha.


























No jardim, onde anda o gatinho sem nome que também deu as boas-vindas. À maneira dele. Entra como se o lugar lhe pertencesse. Olha-me ao longe e depois começa a parte em que pede miminhos. E pronto. Teve os miminhos que queria. As boas-vindas do gatinho sem nome são assim. Com pedidos sem palavras. Depois desapareço. Para ele ficar em paz a beber as saudades todas que teve. No jardim que lhe pertence. Fazer o quê? Os gatos são felinos. Não conseguimos tê-los. Não conseguimos domesticá-los. Bom assim. Que sejam livres. E que peçam os mimos que entenderem.
E Radiohead. Música para regressar. A que regressar sempre. Everything in its right place.

Praia.



























Ninguém consegue dizer o mar como ela o disse. Ninguém diz Lagos como ela o fez. A mulher das palavras que são água. Já longe do mar do sul, fica aqui a evocação de um dia de chuva numa praia sem ninguém. Com imagens. E com as palavras dela. Que também foi feliz ali.
Praia
Os pinheiros gemem quando passa o vento
O sol bate no chão e as pedras ardem.
Longe caminham os deuses fantásticos do mar
Brancos de sal e brilhantes como peixes.
Pássaros selvagens de repente,
Atirados contra a luz como pedradas,
Sobem e morrem no céu verticalmente
E o seu corpo é tomado nos espaços.
As ondas marram quebrando contra a luz
A sua fronte ornada de colunas.
E uma antiquíssima nostalgia de ser mastro
Baloiça nos pinheiros.
                              Sophia de Mello Breyner Andresen

Vila Joya.





Inscreve-se no domínio das experiências. Ou nas coisas que um dia achamos que queremos viver. Quis viver isto. É simples. Depois de dias a fazer comida com encantamento. Depois de idas matinais ao mercado. Depois de dias a realizar ainda mais que as coisas que fazemos da nossa vida não são como a espuma do mar. Não desaparecem. Sendo que isto dá para o que nos faz bem. E para o que nos faz mal, também. Ainda assim, a minha inclinação solar tende sempre para guardar o bom. Procurar o bom. Em tudo. E então, numa noite quente, o meu marido arranjou forma de me dizer mais uma vez as coisas que sente. Sei que se encanta por eu me encantar como se fosse criança outra vez. Quando vou ao mercado. Quando venho de lá com um cesto. Quando me apresso a retirar as frutas, os legumes e as ervas. Para depois querer ficar a sós com as minhas coisas silenciosas. Um cerimonial entre mim e o que veio da terra e do mar. E disse para irmos. Disse que irmos era um presente. Que queria muito que o sul também significasse levar-me a um restaurante muito especial. Para que eu vivesse mais coisas. E para que elas fossem beleza ao meu olhar. Por saber que o que determina ir é o meu respeito e o meu amor pela comida. Pela mesa. Que os cenários podem variar, que eu sou a mesma. No chão de terra batida da Adega do Isaías em Estremoz. A adorar a comidinha de avó do Reis em Lagos. Ou a beber champanhe no terraço do Vila Joya. Sempre a mesma. Gosto que seja assim. E que seja uma coisa tácita, que não precise de ser verbalizada.
Gostei muito. Fui muito feliz ali. Junto ao mar todo que há em frente. Com a noção de que estava a viver coisas que eram para ficar. Que a atenção que dedicasse aos pormenores iria arranjar forma de se transformar em coisas que viessem para o meu quotidiano. Para não ficarem circunscritas a um contexto. Para que se disseminassem.
O importante é sempre a comida. E se fechar os olhos, consigo lembrar-me bem dos sabores. Se fechar os olhos, consigo lembrar-me que havia uma brisa. Que o dia estava quente, mas com uma brisa de mar. Se fechar os olhos, vejo o mar. E oiço o som imperceptível da brisa do mar nos pinheiros mansos. Na minha memória que é emocional e afectiva e impressiva, o Vila Joya é estas coisas todas. E muito aquilo que fez com que um dia pensasse que queria ir lá. Que aquela casa era o lugar mais bonito do mundo para a dona. Que a filha organizava todos os anos um festival gastronómico em homenagem à mãe. A Tribute to Claudia. É assim que em Janeiro, o amor de uma pessoa por uma casa é celebrado. Foi o amor que me levou ali. E não é preciso dizer mais nada.

Coisas súbitas de Verão.



























Ao meu filho, apeteceu arroz doce num dia de calor. Não tinha vontade de gelados. Não queria bolos de chocolate. Nem pipocas. Queria arroz doce. Um desejo improvável para dias de praia. Não deu para recusar a possibilidade de uma memória improvável ao meu filho. Sei que sim. Que há-de lembrar-se que quando era pequeno, lhe apeteceu um doce que não é de praia. Na praia. E que teve o que queria. Um mimo da mãe. Em forma de arroz doce. E então, com a cumplicidade da Dª Deolinda do mercado de Lagos, consegui que fosse com ovos caseiros. Para que o arroz doce do António não fosse branco. Ele merecia que fosse assim como o sol de Lagos. E acabou por ser assim como ele pediu. Um bocadinho de felicidade solar, no rosto dele. E no meu, por ser lindo fazer um filho feliz. Com arroz doce numa concha brilhante. E poesia por perto.

Arroz doce para o António

1 chávena de arroz carolino + meio litro de leite + casca de limão + 5 gemas de ovos + 5 colheres de açúcar generosas + canela para polvilhar.

Leva-se o leite ao lume com a casca de limão. Quando ferver, junta-se o arroz e aguarda-se que fique bem cozido. Entretanto, bate-se as gemas com o açúcar até ficar uma mistura cremosa. Quando o arroz estiver no ponto, acrescenta-se a mistura das gemas e do açúcar. Integra-se bem, com a ajuda de um batedor de varas. E leva-se novamente ao lume durante uns dois minutos, mexendo sempre. A parte de mexer continuamente é importante, senão fica tudo estragado:) e é o toque final para que o arroz doce fique cremoso. Coloca-se numa taça e leva-se ao frio. Na altura de ir à mesa, polvilha-se com canela e umas raspas de limão.

Se ao meu filho apeteceu arroz doce, a mim apeteceu sumo de morangos. Bem fresco. Pouco doce. E foi fácil satisfazer a minha vontade de morangos. Assim: morangos triturados num copo misturador. Umas colheres de açúcar e água. No final, gelo picado. E estava pronto, o meu desejo súbito de morangos. Com revistas de Setembro, que antecipam o Inverno quando isso parece mentira:)

Casas e um fantasma de betão.




























Uma cidade com vida própria, acho. Imagino que Lagos não seja um lugar desertificado nos meses em que não há um mar de gente em busca de mar. Gosto particularmente de olhar as casas no centro. De projectar lá atrás as vidas que as viveram. E de parar para estar atenta aos pormenores. Porque nunca se sabe se vamos poder olhar outra vez as mesmas coisas. Ficam aqui algumas. E um fantasma. Para mim, é uma espécie de fantasma. Um prédio enorme, erguido num descampado. Há anos. Mais de vinte anos, seguramente. Vestígio demasiado visível da altura em que se descobriu que o mar era para férias. Que não dava só peixes. Então, construções. Muitas. O maior número de pessoas no menor espaço possível. E deu em coisas destas. Fantasmas. Mas com nada de etéreo. Um fantasma de betão. Interrompido há décadas. Um lugar que nunca chegou a ser. Nunca chegou a acolher ninguém. Rodeado de arames farpados. E ali. Para ficar. Sem possibilidade de vida. Uma antítese das casas abandonadas do centro. Porque nelas sim, houve vida. E pode voltar a haver. Ali não. Não vai haver. Só se alguém derrubar o fantasma de betão que assombra o céu azul de Lagos.

Almoço de praia em dia de chuva.




























Num dia em que houve chuva. Muito calor. E chuva ao mesmo tempo. Uma sensação de trópicos, a de hoje. De o olhar nos dizer que não, que não é suposto ir ver o mar. Mas sentir-se outra coisa. Sentir que sim. Que era mesmo de ir ver o mar. Antes disso, o almoço. Em dois momentos. A sentir calor e a olhar a chuva.
Para começar, gambas. Fresquíssimas. Com um quê de majestoso. Mas rainhas próximas. Vindas das nossas águas. E a valerem por si. A precisarem só de dois dentes de alho esmagados (ao esmagar os alhos, em vez de os picarmos, ganha-se em dois aspectos: no acentuar do sabor e na ausência de fragmentos queimados a perturbar o resto), algum azeite, vinho branco e coentros. E o tempero prévio habitual: sal e limão. Numa frigideira, o azeite e os alhos durante um minuto. As gambas depois e meio copo de vinho branco, mais o tal tempero prévio. Um fio de azeite e viram-se com frequência durante uns escassos dez minutos. Pouco antes de servir, coentros picados. E o que se segue, é o habitual. Fatias de um pão consistente e uma salada de tomate e cebola.
E continua-se com lulas recheadas. Uma daquelas coisas que não fazia há demasiado tempo. Uma daquelas coisas que era uma espécie de pedido recorrente. A altura certa foi hoje. Quando é assim, faz-se o que está certo. E às vezes é mesmo fácil fazer o que está certo. Com os ingredientes certos. Estes:

6 lulas + 1 cebola vermelha picada + pimentos vermelho e amarelo picados + cebolinho picado + metade dos tentáculos das lulas cortados em pedaços pequenos + 1 tomate coração-de-boi cortado em pedaços + azeite, sal, vinagre e coentros q.b.

Pode pedir-se para as lulas serem arranjadas para rechear, mas hoje apeteceu-me o processo todo:) Depois de arranjadas, reservam-se. Leva-se ao lume os legumes e os tentáculos cortados num pouco de azeite. Quando começar a fervilhar um bocadinho, acrescenta-se sal e vinagre a gosto. Deixa-se fazer durante dez minutos. Recheia-se as lulas com esta mistura, tendo o cuidado de não preencher demasiado. Fecha-se com dois palitos cruzados. Na mesma frigideira onde foi feito o recheio, depois de se retirar o que restou para um prato, leva-se as lulas já recheadas ao lume, em azeite. Viram-se, para ficarem um bocadinho douradas. Quando acontecer isso, junta-se a mistura do recheio e deixa-se cozinhar durante uns vinte minutos. Serve-se arroz branco. E logo, que é quando sabem melhor:)
Com a pressa toda de querer muito o almoço de praia em dia de chuva, um episódio que magoou. Documentado pelo meu filho. A mãe Mar cortou-se, no dia em que choveu. E ele registou o dia de chuva com dedos cortados à mistura. Fica aqui o episódio visto pelo António, que foi por causa do almoço de hoje que há um golpe profundo na mãe Mar:)

Lugares que são um bocadinho de Lagos.
































Nos lugares transitórios onde se permanece transitoriamente, há sempre uns quantos sítios que fazem parte das rotinas transitórias. Com o passar do tempo, vamos sabendo onde ir jantar, quando apetece comida com sabor a uma certa ideia de casa. O Reis. Onde vou há anos. Comida honesta. Preços honestos, a contrariar uma certa ideia de um Algarve que quer tudo num Verão. Sem pensar para a frente. Nota-se que há muitos que vão assim como eu. Que não é ao acaso. Chama-se fidelização, não é? A essa propriedade que faz com que voltemos a um lugar uma e outra vez. Por isso sim. O Restaurante Reis acolhe-me sempre desde há anos. Na primeira noite em Lagos, quase sempre. E eu sinto sempre as mesmas coisas essenciais. Que gosto da comida. Do atendimento simpático. Da ausência de filas à porta. Por estar um bocadinho escondido, talvez. É preciso procurar. Mas encontra-se bem. Numa das ruas do centro de Lagos. Rua António Barbosa Viana, nº 21. 
E há uma certa mercearia, com pessoas que têm sempre um sorriso. Uma coisa de proximidade, por não apetecer mesmo ir a uma daquelas superfícies grandes. Boas, em muitos aspectos. Mas cheias de gente. Mas confusas e labirínticas. Não aqui. Aqui basta-me uma mercearia onde possa ir buscar iogurtes, queijo. Leite do dia e manteiga. Pouco mais. Não é preciso muito mais, por estes dias.
E o sítio em Lagos onde me perco mais. Onde gosto de estar prolongadamente. Mogador, na Rua Gil Eanes, também no centro. Jóias em prata. Com pedras que têm sempre nomes que não sei dizer. Com ar de terem vindo de lugares que são longe. Artesanato étnico. A percorrer continentes, a minha loja dos brincos de prata. Um bocadinho de África. Um bocadinho de Ásia. Um bocadinho de América do Sul. Todos os anos, tempo ali. Em busca de algo que seja Lagos durante o tempo que me separa de Lagos. E podem ser uns brincos que use muitas vezes. Um travessão de prata para o cabelo não fugir. Ou uma coisa de casa. Qualquer coisa de madeira. Ou de mármore. Uma coisa qualquer que eu olhe e seja Lagos de repente. É esse o significado da Mogador. Ser Lagos um bocadinho. Quando a minha cidade impulsiva é um lugar longe, volto aqui de repente.

Coisas que sabem a mar.




























Um mercado como o que há aqui, oferece coisas que sabem a mar, de uma maneira que nos lembra que o essencial é ter boa matéria-prima. Bons pontos de partida, porque o resto pode ser simples e frugal à vontade. E então, eu e os meus ingredientes somos só um pormenor que serve humildemente as coisas que vieram do mar. Uso coisas muito básicas. Sal, limão, azeite, vinho branco e ervas. Coentros, hortelã. O importante são mesmo os peixes. Que pedem tão pouco, quando sabem tanto a mar. Quatro possibilidades, com ingredientes que não variam muito.

Bifes de atum com cebola vermelha

Bifes de atum + cebola vermelha cortada às rodelas + sal, limão, azeite e um pouco de vinho branco + tomate cortado em pedaços + coentros picados.

No momento de comprar os bifes, pede-se para serem cortados com alguma espessura. Quando se chega, tempera-se com sal e limão. Reserva-se uns minutos. Entretanto, parte-se a cebola às rodelas e coloca-se numa frigideira com azeite. Acrescenta-se o tomate picado e um pouco de sal. Quando a cebola estiver ligeiramente translúcida, coloca-se os bifes por cima. E deixa-se fazer durante cerca de quinze minutos, virando a meio do tempo e acrescentando o vinho branco. Decorrido este tempo, retira-se e junta-se coentros picados. Serve-se de imediato. Importante servir logo, porque é do género de peixe que não suporta ser aquecido. Também é temperamental, por isso, altera a consistência quando demora tempo a ir à mesa:)

Cherne com ervas

Faz-se o mesmo e pede-se para que as postas sejam altas. Sal, limão e reservar. Vai ao lume numa sertã com azeite, tomate, cebolinho, cebola e coentros. Faz-se durante uns vinte minutos (pode ser menos, mas as postas de cherne de hoje eram particularmente generosas). Acrescenta-se sal, se necessário. E mais coentros, pouco antes de servir.

Salada de polvo

Esta salada foi feita a partir de uns pedaços que sobraram, quando houve arroz de polvo. Uma maneira de resgatar pedaços de coisas que ainda sabiam bem e que não tinham nada de ir para o lixo. Bastou acrescentar cebola picada, pimento e tomate cortado em cubos. Por cima, um fio generoso de azeite. Vinagre, um pouco de flor-de-sal e coentros.

Camarão-tigre na sertã

Para não ser redundante, basta ir ver a receita nas coisas de Lagos dos outros anos:)

NB: Os bifes de atum pedem um acompanhamento mais ou menos neutro. Costumo servir com arroz branco ou batatas cozidas. Para a variação de cherne, fatias grossas de pão alentejano, ensopadas no molho do peixe. A salada e o camarão também só precisam de fatias generosas de pão.

À noite.


































Lagos é uma cidade de ventos temperamentais. Com humores. Instável. Impulsiva. Emocional, a cidade dos ventos temperamentais. Daí haver tanta arte, se calhar. Corpos feitos mármore nas ruas. Galerias em muitas portas. Livrarias que são mais ou menos lugares secretos. Lugares que é preciso alcançar. E o inesperado ao virar de cada esquina. Escolher uma rua e não outra e haver música. Ir por outro lado e haver bolas de sabão gigantescas a ser levadas pelos ventos temperamentais. Uma cadência diferente leva-nos a malabarismos com bolas de cristal. E por procurarmos uma coisa, às vezes encontramos outra. Um lugar que não havia antes. Que torna ainda mais irresistível o apelo da ginja. Um lugar declarativo. Dona Ginja. Com pormenores da alma que partilhamos todos. Uma alma lusa. E espelhos. E bancos altos e brancos em frente aos espelhos. Mais uma coisa acrescentada. Um lugar que me soube bem. A ginja. E a um bocadinho de nostalgia. Coisas da tal alma partilhada, creio. E que neste lugar são objecto de contemplação. De vez em quando, à noite, vontade súbita de água. Coisas que acontecem à noite. Na cidade que se fosse gente, era assim. Impulsiva.

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