Significa muitas coisas, o gesto primordial de ir. A começar pelo facto de nos expormos ao imponderável. Por mais que até antecipemos. Por mais imagens prévias que haja. Por mais relatos e impressões que se oiça. Por mais referências literárias que preparem o caminho. Vamos e pronto. Com o que somos. Com o que esperamos vir a viver. Sempre com isso. Com expectativa de mais vida algures. Não para escapar da que fica em suspenso nos lugares que deixamos. Não por nos ser insuportável. Tanto, que queiramos escapar-lhe. Uma divergência profunda em relação ao escape, à fuga. É para gostar mais do quotidiano. É por gostar tanto do quotidiano.
Veneza está em mim. Quero muito que esteja aqui. Em fragmentos mais ou menos aleatórios. Mas meus. Daquelas coisas que fazem com que o olhar se demore. Para que fiquem aqui. No lugar onde partilho o que não passou despercebido. Tudo o que fica integrado. Irremediavelmente integrado. Uma parede onde ficou registado um amor que se quis para sempre. Cartazes rasgados. Um jardim privado num lugar onde achamos que a beleza é sem restricções. Frutos e legumes que apeteceu transformar em coisas que perduram na memória. Um homem a guardar uma escultura. Horas ao sol, para vigiar uma escultura. Despojos que não encontram lugar. Céu. Água. E eu. A acontecer no meio disso tudo. No meio de muitas pessoas. Fui mais um dos passos, ali. As coisas nunca mais voltam a ser as mesmas. Pisei aquelas pedras. Olhei a água. Senti o vento. Queria muito adivinhar o vento de Veneza. O scirocco da "Morte em Veneza". O vento quente que vem de África. Acho que não. Que não aconteceu o vento da palavra que acho linda. Terei de voltar, então. Por causa do vento. Para ir em busca do vento que é uma palavra linda de pronunciar. Scirocco. Quase tão bela como sereníssima.
E sim. Serenidade. Apesar do ruído persistente. Das pessoas a seguirem outras pessoas. Dos flashes das máquinas. Das vozes que pediam olhares. Serenidade. Passos ponderados. Mas que quiseram perder-se. Em vielas onde se podia ouvir o silêncio que havia dentro. Sereníssima, então. Como a cidade que foi uma morada transitória.