Uma espécie de antítese.



Isto de o ar ser quase irrespirável, de tão denso. Quente, por todo o lado. Em todos os lugares, isto de se estar só quente. De querer água. Fria. Corrente. E não ser uma coisa de lamento. É bom que o sol seja franco. Que seja mesmo de Verão. Que faça acontecer mais Verão, o sol declarativo. Que se queira mais sol. E de repente, a pele fica de um dourado leve. Ainda sem praia. Mas um bocadinho de ouro na pele. Pelo sol que é ouro, de tão quente. Uma maneira de acontecer Verão é querer também as antíteses. Fresco. Vento. Brisa. Gelo. Gelado. Este é de natas. O favorito do meu filho. Que andava há dias a perguntar se já havia o calor todo, para a mãe fazer gelados:). E então, num dia em que o calor foi suficiente, houve gelado de natas. Com direito a uma assistência vagamente inquisidora, de uma criança ansiosa por uma das antíteses do Verão. Um gelado de natas com uns pozinhos de bolachas de chocolate. Para ele ficar ainda mais feliz, por ter um bocadinho de frio num dia quente.
Faz-se assim, esta maneira de viver mais os dias em que o respirar é quente:

3 pacotes de natas + 1 lata de leite condensado + 5 bolachas Maria de chocolate.

Bate-se as natas até ficarem bem firmes. Junta-se-lhes a lata de leite condensado, envolvendo bem. Vai ao congelador. Antes de servir, polvilha-se com as bolachas raladas. Para ficarem à superfície, antes de se integrarem no gelado branco de que o meu filho gosta muito:)

Uma maneira afirmativa de negar o Verão. Filtrá-lo. Vir cá para fora. Ver o mundo por um filtro. E comer um gelado no meio do calor todo que há cá fora. E esperar que não derreta, entretanto:)

Domingo no mundo.




Quando chega o sol, a música espalha-se. Surge-nos em lugares inesperados. Em estações do metro, nas ruas, em corredores que vão dar a estacionamentos e em ruas estreitas que a acolhem. Gratuita, inesperada, descontextualizada. Aconteceu hoje de manhã. Num café da baixa do Porto. Um lugar onde não entrava há anos. Um lugar que não me via há anos. O Café Guarany.
Hoje foi para música. Com esse propósito definido. Com hora marcada. Para Bach e Lopes-Graça. Pelas mãos da Raquel Reis. A convite de uma irmã fervorosa admiradora do virtuosismo da irmã. Por uma manifestação de carinho em cadeia, então. Foi assim que voltei a entrar num lugar lá de trás. Num domingo. Um dia que é de casa. Que gosto que seja de casa. Mas era tão de viver, esta possibilidade. E irrecusável por isso. Por ser mais uma possibilidade de vida. Com música.
Nunca consigo dizer muito a música. Ou melhor, os efeitos da música. Nem tão pouco consigo pormenores mais ou menos técnicos. Acontece e pronto. Gosto e pronto. Sem que seja realmente preciso perceber os mecanismos que levam a que seja assim. E então, aconteceu tomar café a ouvir a suite nº 4 em Mi bemol maior de Bach (acho que consegui dizer tudo e bem:). Uma das minhas peças preferidas. Uma das minhas músicas da manhã. Nos minutos de carro. Antes do resto do dia. Significa todas as vezes em que pedi interiormente que o resto do dia me soubesse como aquele pedaço de encantamento. E hoje, a sensação muito nítida de nunca ter sido tão bela, aquela peça. De nunca me ter chegado tão livre, tão imediata. Pelas mãos da Raquel. Nas mãos da Raquel, a minha música de início de dia. Também pelas mãos virtuosas que foram dádiva num domingo de manhã, a primeira vez em que uma peça de Lopes-Graça me foi inteligível. As pausas quase imperceptíveis. A exaltação de cada movimento mais violento. E os silêncios. O princípio e o fim da música. A ser feito de silêncio.
Tudo a acontecer com vida a decorrer. Com vidas paralelas a existir. No café de espelhos altos e paredes de mármore. O ruído do mundo. Paralelo à música que estava a acontecer. Uma mulher de costas direitas e mãos de onde saía música. Pedidos de café quase silenciosos. Para não dessacralizar o que estava a acontecer. Música descontextualizada, então. Fora dos santuários onde costuma acontecer. Uma das mulheres da Orquestra Gulbenkian, a Raquel. Que escolheu dedicar-se à música. Ser mais um bocadinho de música no mundo. Obrigada por isso. Pela imagem irrepetível da fragilidade feita força. E pela música que acrescentou vida às vidas que ali estavam.

Damasco.



Predilecção por palavras ambíguas. E doces de pronunciar. Damasco. Não custa dizer. Desliza de uma sílaba para as outras, a palavra ambígua. Uma palavra que é um fruto e um lugar longínquo. Um lugar que é um oásis no deserto. Feito de labirintos que não sei. De cheiros e vozes que não sei. De mesquitas e pátios com laranjeiras que não sei. Sei o fruto. O fruto é mais perto do que o lugar. O lugar habitado mais antigo do mundo. Damasco. Mais uma palavra a juntar à evocação de damasco: doce.
Como fazer o doce da palavra que é um lugar e um fruto:

A mesma quantidade de frutos (cortados ao meio e com pele) e a mesma quantidade de açúcar + o sumo de um limão + meio copo de água + o tempo suficiente de lume até chegar ao ponto de estrada.

A juntar ao fruto, ao lugar e ao doce, iogurte grego. No dia da última aula. O final do dia da última aula foi em silêncio. Com iogurte e o doce da palavra ambígua. E a poesia da última aula. A da Tabacaria. Para que dizer que se chegou ao fim fosse assim. Com palavras de alguém a dizer que não é nada.

NB: Não foi feito por mim, este doce. Presente de uma sogra que não é bem como as outras:) Para um homem singular que gosta muito de doce de damasco. Há muito.

Quase Verão.



Presta-se a coisas com sol, esta altura do ano. Já em contagem para o Verão. Que começa no dia mais longo do ano. O dia em que há mais luz. E então, os inícios de refeição querem-se assim. A dar protagonismo aos frutos. A este em particular, por ser lindo. Por ter uma beleza muito feminina. Apesar da compartimentação obrigatória de género. Não importa. Para mim, é um fruto que evoca a beleza frágil, simultaneamente poderosa das mulheres. Associados a lascas finas de presunto. E a pingos de mel. Uma ligação forte, esta. De adivinhar a textura irrepetível dos figos. O doce de um mel ligeiro, floral. E cortar isto tudo com a franqueza do sabor do presunto. É sempre boa, esta maneira de antecipar um jantar de Verão. Hoje soube particularmente bem. Porque à volta, tudo era doce e luminoso. Porque consegui olhar uns dias à frente. Apesar de não conseguir isso muito bem. Uma coisa quase endémica, a de não querer estar no dia que está para vir. Mas hoje pensei que o dia mais longo do ano está quase. Que está a uma distância de quase. E isso fez-me bem. A ideia do sol que está para vir, fez-me bem. Hoje. E depois, mais um bocadinho de figos. E mais um bocadinho de presunto. E mais um bocadinho de mel. Para pensar melhor a ideia de dias longos e quentes. Para ouvir melhor as vozes de quem chega aqui. E fica horas doces em torno da mesa. Porque há mais tempo, no Verão. Julgo ser esse o ponto. O de haver mais tempo. De dar sempre para mais um bocadinho do que há para viver. Mesmo que hoje não tenha havido tempo para registar a mesa de almoço. Uma falha. Porque os domingos são sempre de mesa que se regista. Hoje era para ajudar a estudar. Por amanhã ser dia de exame de Português. Todos os anos, a mesa do jardim a ser cenário de sessões intensivas e prolongadas. Por isso, à mesa deste domingo houve Fernando Pessoa. E José Saramago. E Luís de Camões. E Luís de Sttau Monteiro. E alguns alunos. Convidados ilustres, portanto:) E no final do dia em que foi quase Verão, bastou dizer-lhes para serem inteiros. E que ia correr tudo bem, se não se esquecessem de ser inteiros.

Um dia.



Um dia para ele. Por ser finalista. Porque dentro de meses, vai para a escola dos meninos grandes. E cortar um bocadinho e quase irremediavelmente com um universo que é muito livre. O universo próprio das crianças. Sem outra obrigação que não a de ser feliz. Brincar muito com blocos de madeira. Para fazer catedrais. Prédios que são sempre os mais altos do mundo. Lugares onde se pode guardar os carros mais velozes. Ou labirintos onde nos podemos perder. E onde nos encontramos logo a seguir. O património dele. Feito de blocos de madeira que são sempre aquilo que ele quiser que sejam. 
Não falava de outra coisa há semanas. Da festa dos meninos que iam para a escola dos grandes. Do segredo que tinha de guardar, para que a mãe tivesse uma surpresa. E o inevitável. Os pedidos para o dia. O jantar teria de ser "carne branca". Queria conchas do mar na mesa. E velas que cheiram bem. E assim foi. No dia em que a mãe andou a embrulhar palavras em papel de seda. Por ter sido esse o presente dos pais dos meninos que vão para a escola dos grandes. Palavras embrulhadas em papel frágil e fitas do tecido das saias das bailarinas. E na memória, o sorriso dele a acolher-me. Quando a mãe deu uns passos à frente. Para ler o texto que estava dentro dos embrulhos. Os olhos brilhantes do António. Que me fizeram esquecer que estava a dar uns passos em frente. E que havia muitas pessoas. De repente, não. Havia só ele. Era só para ele. E estava tudo bem.

Nº 380.

Faz dois anos que começou. Exactamente por aí. A dizer que ia começar. Sem saber muito bem o que fazer a seguir. Ou como. Seria para guardar receitas. Para que quando voltassem a ser pedidas, fosse este o caminho. Em vez de escritas num papel, estariam aqui. Com imagens. E seria assim. Enquanto pudesse ser. Enquanto houvesse algum sentido de disciplina para registar. Coisas. Uma categoria onde coubesse tudo o que se quisesse. Da Mar. De amar. Não haver sequer um nome diferente do que era reconhecível. Era Mar antes de começar. Ia continuar a ser Mar. E as coisas tinham de ser assim. Coisas que tivesse gostado muito de viver. Para ficarem aqui. Eu iria ler. E os que me são próximos. Uma ou outra pessoa viria para a receita de um certo doce, de uma certa refeição servida previamente. Os comentários seriam directos, posteriores à execução da tal receita. Ficou bem. Obrigada. Coisas assim. E seria assim. E foi sendo. Foi continuando. Havia vontade de vir aqui. De continuar. Sem que o objectivo fosse outro que não o de registar. Era e é importante ser sem objectivos. Para que fosse livre, o registo.
E hoje olhei para trás. Nunca o tinha feito. Sem saber porquê. Mas hoje fazia sentido. Queria ver se dava para quantificar. Se dava para algum tipo de aritmética. E deu para isso, para chegar a um número. Trezentos e setenta e nove. Trezentas e setenta e nove vezes em que quis estar aqui. E chegar a conclusões, também. Tanto quanto se pode chegar a conclusões, quando se está em processo de viver. A mais definitiva. A mais grata das conclusões. As pessoas. O melhor, aqui e no registo com rostos. Tem sido sempre assim. Começou por aí. Pela persistência de uma pessoa. De um amigo que disse que já chegava de escrever receitas num papel. Que era altura de ter um lugar onde pudessem estar. Um amigo que ensina a fazer contas. Aritmética. Só para dizer que tem sido boa, esta aritmética. E que faz dois anos que há Coisas d'Amar. Trezentas e oitenta razões para continuar.
Fica uma imagem cristalizada pelo meu filho. O céu visto pelo António. Por ter achado lindo que tenha tirado uma fotografia ao céu, o meu pequenino que é um menino alto. Que diz que quando vê o rosto da mãe Mar, fica feliz:). A Mar no céu do António, então.   

Frágil.



E aconteceu. Partiu-se. Não dá para substituir. Para ir em busca de um igual. Não há em lojas. Nem tem uma marca. Não tinha idade, o copo que o meu filho partiu. Um gesto cheio da alegria que só as crianças conseguem. Um pousar demasiado determinado. E isto. Partiu-se um dos meus copos preferidos. Com flores desenhadas a ouro. E a delicadeza irrepetível de beber pelo copo que se partiu. Tão irrepetível, que vai deixar de haver.
Aconteceu assim. Um lamento inicial, a olhar os dois pedaços que não podem voltar a unir-se. Por se terem quebrado. Mas depois, continuar a ver beleza. Mesmo quebrada. Permanecia, a beleza que o tornava irrepetível. E frágil. Como tudo o que é belo. Uma metáfora, o meu copo partido. Olhei-o. E era uma metáfora. Disso, da fragilidade da beleza. Mas de outras coisas que me dizem muito. Como esta conclusão muito elementar. Ele partiu-se porque era usado. Partiu-se porque não estava fechado num armário. Junto a outras coisas fechadas. Partiu-se enquanto era vivido. Por ser vivido. Até pelas mãos imponderáveis de uma criança de seis anos. Uma opção que importa riscos, esta de escolher viver seja o que for. Ainda assim, saber que mesmo que nos quebremos de vez em quando, como o meu copo, é melhor a parte de não se estar à espera de viver lá à frente. É assim com os copos frágeis que estão à mesa de todos os dias. As pratas que se juntam a chás de final de tarde. E a jantares prolongados. E ao mais que houver. Vinhos que não esperam demasiado tempo até serem prazer acrescentado. Lugares que são sempre de conhecer urgentemente. Pessoas a quem temos mesmo de dizer que é lindo que existam. Coisas assim. Coisas destas que surgiram enquanto olhava o meu copo partido. Lembrar-me dessa característica que é de impulso. Se há beleza, para quê privarmo-nos da contemplação? Se queremos muito, para quê obrigarmo-nos a não querer? Ainda que nos quebre. Ainda assim.
Então, apesar de o meu copo se ter partido, vou continuar a usar os outros todos. Igualmente belos, de tão frágeis. Os armários vão continuar a estar entreabertos, por serem de coisas que são usadas. Coisas que dão muito. Enquanto existirem. E quando não, lembrar o que foram. A beleza toda que foram. A felicidade que souberam dar, enquanto estiveram lá. E saber que se podem reinventar. Ganhar vidas novas. Que nos oferecem outros olhares. Como este. Um copo partido, cheio de cerejas. Sobre umas asas de anjo. Numa mesa. A encontrar maneiras de regressar à mesa, o meu copo partido.

PS: Registar hoje a humildade luminosa da minha aluna que escreveu um livro. A Marta, num programa de televisão de hoje à tarde. A voz calma e ponderada da minha aluna. A dizer-se. E às coisas que vai vivendo. Sem pressas. E sem coisas apressadas. Porque o episódio fugaz e irrelevante do copo partido surgiu quando falámos. Depois dos holofotes e das perguntas. Para dizer que sim. Que é bom vivermos as coisas. Retirarmos delas o melhor que pudermos. E que se nos partirmos, haverá sempre esse património irredutível. E nosso. Inquebrável, esse. Para corresponder, as palavras da professora Mar. À ternura com que falou desse outro episódio. O de termos coincidido. Obrigada à Marta. Que é de muitas cores.

Coisas dos dias prolongados.




O que mais queria destes dias em que o mundo próximo abrandou. Estar quieta. Não fazer planos. Ver as pessoas que queria muito ver. Estar prolongadamente com rostos que significam. Marcar só o que queria muito. Como um almoço anunciado. A realidade a tornar tangível o que se ia adivinhando pelo virtual. Ir a casa da minha amiga Babette. Ter direito a uma refeição feita por ela. A uma mesa. A uma ementa. E a abraços prolongados com miminhos a intercalar. De braços pequeninos e irrequietos de cinco anos. As perguntas com a candura dos cinco anos. Se eu tinha vindo do mar. Se vivia lá, no meio da água. Que não. Que era Mar porque sim. Porque começaram a chamar-me de Mar. E que era estranho quando não era Mar. Para eles ser sempre Mar, então. Para eles, um bocadinho do meu jardim. Porque de manhã cedo os imaginei a brincar lá fora com o meu filho. Quase que dava para adivinhar as vozes e os risos. Num lugar onde as fadas podem repousar, quando ficam cansadas. A juntar, uma imagem da música que sai das mãos da mãe dos meninos que hão-de brincar ali fora. E um pedaço de uma ementa. A cristalizar uma data que não é de esquecer. Fica aqui, também. Para me lembrar que foi no dia 11 de Junho que todos passámos a ter rosto. Primeiro as mães. Depois, os filhos e os pais. Rostos que aconteceram juntos neste dia.
Dias prolongados que significaram aquilo que se consegue dizer. Dias com sol em que quis muito a sensação de existir sem outro plano que não este. O de procurar estar bem. A existir sem pressas, sem ter mesmo de estar nos lugares onde temos mesmo de estar todos os dias. A retirar densidade a isso de ter de. Melhor querer ou não. Nos dias em que podemos escolher. Ser soberanos. Despertar sem ruídos estridentes e urgentes. E dormir à tarde porque sim. Estar tempo a olhar as árvores porque sim. Voltar a ler coisas que já foram lidas. Mrs. Dalloway disse que ela própria ia comprar as flores. Uma passagem repetida, sem grande significado. Aparentemente. Da escritora que entrou na água com os bolsos cheios de pedras. A escritora que não sabia fazer comida. Nem dar instruções a criadas que sabiam sempre mais da casa do que ela. Que estava sempre com os dedos manchados de tinta. Porque havia isso de escrever. Até se tornar insuportável. Até não aguentar mais e ter mesmo que ir pela água. Com os bolsos cheios de pedras. Um bocadinho das flores da festa de Mrs. Dalloway. Enquanto existia em dias de sol. Prolongados.

Prelúdios.




Acaba por ser inevitável. Sempre as mesas. Cá fora, quando há sol. Por não querer desperdiçar um dia de sol. Uma forma de render homenagem a um deus quente. Que dá vontade de fazer coisas. De viver coisas. Mais e mais. Nestes dias em que apeteceu mais, duas mesas. Uma com as hidrângeas do jardim. Que este ano estão um bocadinho renitentes. Ainda não se decidiram pela explosão de serem flores por todo o lado. Consegui estas, pela manhã. E quis vê-las à mesa de um almoço. E aconteceram assim. E a mesa da cor voluptuosa. Com branco à mistura. E livros sobre lugares que são longe daqui. Para serem perto.
Declinações inevitáveis, as mesas. Que surgem sempre antes da comida. A serem uma espécie de prelúdio. Elas e a música, a decidirem o que vai estar à mesa. A integrarem-se devagar, até tomarem formas e sabores. E a dizerem que é sempre bom o que acontece por elas existirem. Uma mesa e uma música. A decidirem o que vai acontecer a seguir. Prelúdios para coisas que querem fazer bem.

Um doce cor de sol.




Um daqueles doces. Daqueles que parecem mesmo o prologamento de coisas boas. Uma ideia matinal, esta. Que amadureceu até ao final do dia. Persistente, a minha ideia de começo de dia. Mas a tempo de ser servida ao jantar. No tal prolongamento de coisas boas. Porque se quer coisas que evoquem o sol. Porque se quer coisas que não precisem de muitas etapas até se chegar ao resultado final. Breves, as palavras. Porque soube bem. E às vezes, é assim. Não precisamos de dizer tudo. Pode bastar por si, este doce que soube bem. A sol. A lugares onde há o sol todo que se queira. E a um bocadinho de persistência, também:) Ainda bem que sim. Que a persistência levou a melhor. E que se transformou numa tarte de manga.

1 pacote de bolachas Maria + 100 g de manteiga derretida + leite q.b. + 1 lata de polpa de manga + 1 lata de leite condensado + 1 folha de gelatina branca + 2 iogurtes gregos + framboesas.

Antes, tritura-se as bolachas. Numa taça, mistura-se as bolachas com a manteiga e um pouco de leite (não consigo precisar a quantidade, porque vou vendo pela consistência). Coloca-se numa forma de fundo amovível e leva-se ao frigorífico. Depois, o leite condensado. Em banho-maria. A folha de gelatina (previamente hidratada em água fria) e dissolvida no leite condensado quente. Retira-se do lume e junta-se cerca de metade da polpa de manga, reservando-se a restante para a cobertura. No final, os dois iogurtes gregos. Leva-se ao frio durante o tempo suficiente para que solidifique e fique fresca. Como neste dia havia urgência:), bastaram umas duas horas. Desenforma-se e cobre-se com a polpa de manga. E as framboesas. Que ficaram lindas, na tarte de manga. E que souberam bem. Às vezes é assim. Coisas lindas que sabem bem:)

Um doce cor de sol. Que fez bem. Que soube bem.

Enumeração.




Tempo. Creio que será essa a palavra. Quando penso em sábado. E em domingo. E na noite de sexta. São tempo. E aqui, significa mais tempo para estar à mesa. A começar pelo jantar de sexta. Mais ritualizado. Por dar início. Por assinalar o tal tempo em que há mais tempo. Cristais e luzes. Queria pontos de luz no jardim e à mesa, quando o dia fosse embora. E houve. Só que me esqueci de guardar imagem:) Ocupada a viver, muito provavelmente. Fica para a próxima, a mesa cá fora com luzes. Enquanto não, a mesa pouco antes de a luz do dia ir embora.
No sábado. Todos os dias, a meio de pequenos-almoços mais ou menos sincronizados, olho para a frente. Para os pequenos-almoços de sábado e de domingo. E sei que significam que a mesa é posta sem gestos mecânicos. Que se olha para o verde lá fora enquanto as torradas ficam prontas. Que o café quente sabe melhor. E que os jornais são lidos na altura certa: de manhã. A partilha dos jornais. Quem lê o quê primeiro. Com que cadência. Abrir a página nas crónicas que são lidas antes de tudo o mais. As revistas com dossiers. Temas. Opiniões. Coisas breves e alargadas. Uma espécie de espuma dos dias, a dos jornais lidos ao fim-de-semana. Um ritual de mesa, também.
E o almoço de domingo. O que é antecipado com mais tempo. Com mais música ainda. E com mais sol. É melhor quando há mais sol. Como hoje. E surgiu tão elementar, a mesa de almoço. Uma caixa de madeira de um lugar onde encontro coisas que me fazem bem. Em Lisboa. O Delidelux. Um lugar onde olhar o rio. Para um brunch de sábado de manhã, depois de compras de mercearia. Uma boa memória à mesa de domingo. Dentro de uma caixa de madeira. Ervas que fazem coisas boas. Tomilho. Orégãos. Cebolinho. Manjericão. Não era preciso mais nada. Bastava isto. E Arcade Fire. Música com nomes que não combinavam com o sol. Funeral. A música que foi uma festa de aniversário, há cinco anos. Antes de um concerto, agora. Perto de um concerto em Julho.
Uma enumeração. De mesas. De coisas que se podem ver por fora. E de outras que se adivinham. E que estiveram lá. Os que estiveram às mesas. E aquilo que deixaram de si nesse lugar inicial onde se gosta muito de estar. Com tempo.

Nunca se sabe.



Nunca se sabe. De manhã. A manhã nunca nos traz tudo o que vem a seguir. Há alguns dias que podemos antecipar como sendo possibilidades. De beleza, de encantamento, de carinho. Mas nem mesmo esses podem ser suficientemente previstos. Bom assim. Perderiam tudo à partida. Porque de manhã, não sabia que iria receber um ramo fresco de ervas aromáticas. Hortelã-pimenta. Tomilho. Salsa. Alecrim. E cebolinho. O cebolinho que quisesse. Afecto em tons de verde. De quem sabe que me faz bem com presentes verdes. Mesmo a pedir integração, o meu presente de final de dia. O protagonismo estava reservado para lombinhos de porco preto com laranja. Estava. Porque a massa acabou por ter uma espécie de papel central. Apesar da leveza. Mas esteve à altura, com cebolinho, salsa e tomilho. Um pedaço do ramo de ervas aromáticas que me fez feliz. Mesmo a tempo de uma marca indelével, o presente verde. E de manhã, não sabia que seria dia de AD. Havia a possibilidade. Como todas as possibilidades, era incerta. Mas sim. Aqui. À espera de ser lida. Olhada. Com o silêncio que só há à noite.
Acho que agora é para deixar a receita:
Dos lombinhos, primeiro.

2 lombinhos de porco (não tem necessariamente que ser de porco preto) + sumo de uma laranja + sal + pimentão-doce + azeite + vinho branco + pimenta preta e rosa moída na hora.
Deixa-se a carne a marinar durante uns minutos nos temperos (quanto mais tempo estiver, melhor). Leva-se ao lume num tacho fechado durante trinta minutos. Decorrido este tempo, fatia-se os lombinhos e fritam-se ligeiramente em azeite numa frigideira. Depois de se virar a primeira vez, adiciona-se o molho que ficou no tacho onde foram cozinhados até terminar. E pronto. Ficam prontos:)
Da massa, depois.
Massa pappardelle + sal + azeite + um dente de alho esmagado + cebolinho, tomilho e salsa picados + água q.b.
Coze-se a massa em água com sal e um fio de azeite durante cerca de 10 minutos. Retira-se para um passador de rede e passa-se por água fria e abundante. Numa frigideira, um dente de alho esmagado em azeite. Junta-se a massa depois de escorrida e as ervas aromáticas, pouco antes de se retirar do lume. E serve-se.

A música que esteve, enquanto o presente verde se transformou em jantar. A banda sonora de um filme em que todas as personagens se vestiam de verde. Baseado num livro de Charles Dickens. Great Expectations. A música que é o meu mar de Lagos. O mar todo de Lagos. Aqui guardado. Também não sabia isto, de manhã. Que hoje iria lembrar-me das águas do sul. Um bocadinho de mar.

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