Para o último dia de Maio.




Termina Maio. Os dias das flores por todo o lado. E bem no último dia, assinalar que há cheiro a tília. Que por estes dias, a árvore imponente acolhe o regresso a casa de uma maneira sempre irrepetível. Mesmo que assim seja todos os anos. As coisas de sempre têm este poder. O de encontrarem formas de nos encantarmos como se nunca nos tivessem acontecido. Um registo, este. Para dizer que o último dia de Maio cheirou a tília.
Para assinalar mais um mês de vida, uma mesa. Antes da parte da comida, a mesa precisa sempre de concretização. Para deixar de ser um conceito difuso. Num impulso, ramos de loureiro. E uma grinalda de luzes. Numa toalha branca. Com loiça branca. E copos largos de cristal. Não quis mais nada. Era importante que fosse branca, a mesa de hoje. Só com o verde das folhas de loureiro. Mais um aroma. A juntar ao das tileiras lá fora. Para o jantar, peixe muito fresco. Postas generosas de garoupa. E arroz com legumes que chegam todos os anos em Maio. As ervilhas de quebrar. Delicadas e muito verdes. Uma coisa a precisar de vigilância, o arroz. E uma outra mais autónoma:), que se faz sozinha, o peixe. 
Assim, o jantar do último dia de Maio:
Garoupa cortada em postas relativamente altas + sal e sumo de meio limão + 1 tomate cortado em cubos + 1 alho francês + metade de um pimento vermelho + coentros picados + azeite.
Basta colocar as postas numa frigideira larga e juntar todos os ingredientes. Deixar um bocadinho neste tempero e levar ao lume. Decorridos uns cinco minutos, virar as postas com cuidado e deixar ficar o mesmo tempo, para se cozinhar por igual dos dois lados.
O arroz de coentros e ervilhas de quebrar:
Uma chávena almoçadeira de arroz carolino + cerca de 1 litro de água + azeite e sal a gosto + metade de uma cebola picada + 2 cenouras cortadas em pedaços pequenos + metade de um pimento vermelho + coentros picados + as ervilhas de quebrar que quisermos:)
Um refogado elementar: a cebola, as cenouras, o pimento e azeite. Uns minutos até a cebola ficar translúcida. Junta-se a água quase toda, deixando-se um pouco para o final, caso seja necessário acrescentar. Deixa-se ferver. Depois, o arroz e sal. Quando estiver quase cozido, junta-se as ervilhas de quebrar e os coentros. Depois, é só esperar que o arroz fique com a consistência certa. Acrescentar água e sal. E servir de imediato.

Coisas para o último dia de Maio. Para chegar à conclusão que sim. Que foram muito bonitas, as flores de mais um mês. Uma maneira possível de se prestar culto. Ao deus das pequenas coisas. As de todos os dias.

Uma espécie de segredo.




Gosto de sítios assim. Uma daquelas coisas de não se adivinhar por fora o que está dentro. Vê-se a palavra chá numa das janelas. A bastar por si, quase. E entra-se por isso. Pela possibilidade de chá. Lá dentro, madeira por todo o lado. Toalhas de linho em tons rosa quase a desmaiar para o branco. Loiça branca e azul, a fazer pensar no campo inglês. Luzes nos lugares certos. E nas mesas, em candeeiros que se ligam para o ritual do chá. Estes são pormenores. Coisas que tento acrescentar às imagens. Pequenos detalhes em que vou reparando e que me acrescentam. Sair de casa também significa isso. Deixarmos que nos sejam acrescentadas coisas que estão lá fora. E a sensação de que, se fechasse os olhos ao que estava lá fora, estava no país onde chove muito. E onde a palavra conservador adquire significados bons, já que em leituras apressadas, significa coisas não muito boas.
Neste lugar, num dos centros do Porto, a palavra que evoca o bom de conservar coisas, diz que sim. Que os anos podem passar. E já lá vão alguns. Que aqui continua tudo no ponto em que o deixámos. Continua tudo bom. Os pãezinhos mornos com fiambre. Os bolos caseiros. Os sumos naturais de fruta acabados de fazer. Os chás raros e perfumados. O acolhimento. Tudo permanece indiferente ao passar dos dias que às vezes passam demasiado rápido. E que ocasionalmente levam coisas boas consigo. Coisas que deviam permanecer tal qual as deixámos no dia anterior.
Só para dizer que soube bem, esta paragem. Soube a todas as outras pausas anteriores. Voltar aos nossos lugares. Uma das coisas boas de ir. Voltar aos sítios que nos reconhecem e acolhem. E que dizem que está tudo bem. Enquanto houver chá. E tartes de morangos. E pãezinhos mornos. Uma espécie de segredo, por estar tão bem camuflado, na zona frenética do Aviz, no Porto. Só por isso. Porque se tem a sensação de este ser um sítio onde muitos vão. Assim como eu. Há muitos anos. Ao Chá Clube.
E ao olhar lá para fora, tinha começado a chover. Assim sem mais. Como no país que estava ali dentro. Numa chávena de chá branco.

Mediterrâneo.



Numa palavra, o sol todo. O tempo lento dos lugares que têm sol. Os tons-terra dos lugares que têm sol. Verdes secos. Ocres. Castanhos e cor de areia. Mediterrâneo. E uma palavra ser os países todos que têm mar e luz quente e prolongada. E comida. O sabor dos países que têm sol. Que perdura na memória afectiva.
Creio que seria infeliz num lugar onde o sol fosse escasso. Uma daquelas evidências. Uma mesma herança solar, que partilhamos, os países mediterrânicos. Olhados de cima pelos nórdicos. Inveja do nosso sol, provavelmente:). E sim, somos conhecidos por reagirmos a quente. E sim, as mesas dos italianos, dos portugueses, dos espanhóis e dos gregos são barulhentas e inflamadas. De tão apaixonadas e espontâneas. E sim, gostamos muito de sol. De mar. De comida que vem da terra e do mar. Somos de transformar coisas que seriam só de comer em memórias. De as celebrar à mesa. Como hoje. Que apeteceu uma memória. O que mais ficou em mim de uma ilha no Mediterrâneo. Parmesão e mel. Simples. As refeições num bistrot pequeno. Familiar. E uma proprietária claramente nórdica. 
Chegar a casa com sol. Cortar lascas finas de parmesão. Uma colher de mel de flores. Lavanda. Ramos da oliveira do jardim. Um sabor que teve sol. Um final de tarde que recuperou a memória quente de Maiorca. Lá, era sobremesa. Aqui, gosto que seja uma maneira de dar início a uma refeição num dia de sol. Basta ter parmesão e mel. Uma maneira de gostar ainda mais de regressar. Todos os dias. Hoje foi assim. Com mel e parmesão. E Unfinished Sympathy. Massive Attack. Música para haver um bocadinho dos lugares que não têm o nosso sol:)

Sequência de coisas que fazem bem.





De vez em quando, aquilo que não controlamos, lembra-nos que nem sempre conseguimos estar bem. Chegar ao que queremos ou procuramos. Não sei bem. As coisas que nos fragilizam são assim. Vêm e pronto. Atingem-nos e pronto. E ficamos com a parte complicada em mãos. Fazer alguma coisa. Ou não. Quando nos é dada hipótese de escolha. Porque nem sempre é assim.
Perder dias de sol por estar frágil lembra que estamos expostos a contingências imponderáveis. Ver o sol por detrás de uma janela. Não ter força ou vontade de vir ao jardim, para ver se a minha roseira preferida ainda está linda e perfumada. Coisas assim. Coisas assim que nos fazem querer mimos e carinhos e cuidados. Por sermos quase sempre nós a cuidar, a mimar, a fazer carinhos.
E então, a resposta às coisas que são assim e pronto. Um bocadinho de sol, uma bebida fresca com a tal hierba buena, a que faz bem. Uma revista que fala de lugares ao sol. Nestas alturas, lembro-me sempre da minha mãe. A minha mãe é muitas coisas. Nestes dias frágeis, a minha mãe foi uma sopa reconfortante cheia de legumes que acrescentam vida. E um bocadinho das sopas da Fa, na imagem da sopa. E quis um doce pensado pela minha amiga que também é assim: doce como um pudim fresco de manga. Para o jantar, massa para o meu filho. Uma das receitas de massas com legumes e com gambas que já partilhei aqui. Só porque ele gosta muito.
O meu filho. Que quis ter a mãe de volta. Um desenho fez isso. Perguntei o que era. Nem sempre conseguimos perceber as coisas à primeira. Transcrevi a resposta para a página da minha agenda. Guardei o desenho. Lá e aqui. Tão bonita, a sensibilidade a formar-se. Um jantar romântico de um homem que encontrou a mulher perfeita:) De onde surgirão estas coisas? Todas estas coisas que fazem bem.

PS: A receita do pudim de manga está no blog da Babette. A da sopa já foi partilhada aqui. E a da bebida há-de ser um post futuro.    

Mesa pós-convalescença.




De convalescença, o fim-de-semana. Uma quase hibernação. A sensação de não apetecer reagir. De me permitir não reagir durante umas horas. Demasiado longas. Sentir a fragilidade de estar doente. Por inteiro. E ir dizendo interiormente que agora não. Que agora não conseguia. Mais tarde. E à tarde, o sol doce de domingo resolveu despertar-me. A ver se ainda vinha a tempo de sol. E então, voltou a música. Pearl Jam. I'm still alive:) Depois, a vontade de pôr uma mesa. Com as primeiras hidrângeas. Hortelã. Rosas e brincos de princesa. Em copos de chá. Uma chávena. E um copo largo. Cerejas. Chocolates numa taça de vidro. Uma enumeração de coisas pequeninas que são um universo. A lembrar que parece não acabar, a vontade de mesa. Ou que a vontade disso, de pôr uma mesa, resgata. Liberta do que nega ou fragiliza. Crónica de um fim-de-semana em convalescença. Mas a tempo de sol. De uma mesa de jantar. E de outras coisas que fizeram bem. Que fazem bem.
No fim do dia, Deftones. Change. Be quiet and drive. Em versão acústica, que ainda não estou completamente recuperada:)

Para a Marta. Que escreveu um livro.


A Marta tinha quinze anos quando escreveu o livro que hoje apresentou. Tem dezasseis, agora. Uma maneira que encontrou para fazer todo um percurso interior. Porque se viu muito cedo na circunstância de ajudar a cuidar de uma irmã com paralisia cerebral. Com tudo o que esse ajudar implica de perda de centralidade. Por haver uma vida que precisava de cuidados continuados, concentrados e sempre urgentes. A minha aluna do cabelo às cores escolheu transformar todas as coisas duras da sua circunstância em palavras. Concentrou-as em oitenta páginas. E escolheu partilhá-las com a professora de Português, no Verão do ano passado. Uma dádiva, então. Ser-me confiado um livro de uma aluna.
Deixou há uns meses de ser minha aluna. Está agora numa escola grande, decerto. Na cidade da luz mais bonita. É por lá que anda a minha aluna do cabelo às cores. Há umas semanas, a notícia de que o livro que estava no meu email, iria materializar-se. Que a apresentação seria hoje. E que queria que eu escrevesse o prefácio. E que estivesse lá. Mais dádivas. Mais coisas gratas, vindas da minha aluna. E sim, com um orgulho enorme. Escreveria e estaria lá. A tentar dizer a graça de me ter acontecido a Marta.
Acontecem coisas muito bonitas na vida de quem ensina. Cada aula é uma tentativa de nos dirigirmos aos mundos que se sentam nas cadeiras. De apelarmos. De interpelarmos. De sermos duros, por vezes. Porque o afecto pressupõe verdade. E a verdade nem sempre é fácil. Ela costumava estar lá. Um dos imaginários que se sentava a escutar. Já não assisto às variações na cor dos cabelos da Marta. Cada semana uma cor diferente. É a luz de Lisboa que assiste a isso tudo, agora. Não importa. Somos significativas sem o quotidiano.
Escolhi partilhar pelo óbvio: quero que o livro dela chegue a mais pessoas. E porque queria que ela estivesse aqui. Que fosse uma página inteira, a minha aluna que escreveu um livro. Porque sei que, para ela, hei-de ser sempre a professora Mar. Fica a dedicatória. E o momento em que a escreveu. O momento em que uma professora está em pé, a aguardar que uma aluna escreva uma dedicatória no livro que acabou de conhecer o mundo. Pela humildade que se adivinha. Por cristalizar o orgulho de todos os professores que vêem os seus alunos a avançar. A serem inteiros na vida que há para a frente. E que nos vê ficar para trás, felizes por termos feito parte de todos os percursos que são os nossos alunos.
Na última aula do dia, na turma que era a da Marta, as perguntas. Se também iria, se eles fizessem uma coisa grande e importante. E se ia sentir orgulho neles. A resposta simples, a querer corresponder ao carinho das perguntas. Que já me orgulhava de cada um deles. Por cada coisa pequenina e quotidiana. E que sim, que iria. Para sentir mais orgulho. Só para aumentar o orgulho que já há.

1001 cores. Marta Guerreiro, Edições Esgotadas.
Que seja só o primeiro livro da minha aluna do cabelo às cores.

Uma mesa com vista.



A experiência é, no mínimo, curiosa. A começar pelo lugar por onde devem começar as coisas: pelo início. Chega-se a uma zona na Foz. Claramente residencial. As indicações dizem que chegámos ao destino. E são quase inquestionáveis. Mas olhamos em frente e é um prédio. Uma placa discreta a dizer que chegámos ao Mesa, acaba por impedir que se dê meia volta e que se procure melhor. Quarto andar. Mais uma instrução. No elevador, devemos premir o botão que diz quatro. Feito. E depois, abre-se o olhar para uma sala cheia de luz. Mar ao fundo. O último andar de um prédio. Que é um restaurante. E que tem um nome fácil de dizer. Mesa. E havia um nome melhor? Talvez seja este o mais elementar.
Uma designação que podia ter ficado por isso mesmo. Mas que se prolongou. Pelo de melhor que pode haver a uma mesa: aquilo que se come. Neste sábado de sol, à mesa do Mesa, apeteceu creme de cenoura e laranja, lombinhos de porco gratinados, tarte de maracujá e um Riesling da Nova Zelândia. E foi bom ter apetecido. Melhor ainda, que o que os sentidos viveram, tenha correspondido às expectativas, ao olhar para a ementa. Coisas iniciais, que se prolongam. E depois, olhar em frente. E olhar um rosto que é de amizade terna. Como se tivéssemos partilhado todos os não-ditos do que está lá para trás. No tempo em que não havia isto de sermos amigas. Uma longa conversa. Horas para chegar à conclusão de que ainda havia mais para dizer. A melhor das conclusões a que uma amizade pode chegar: que ainda há mais. Inconclusiva, a amizade que surgiu por causa de uma mesa. E pensar em todas as mesas que estão para acontecer. Uma maneira bela de dizer adeus ao final do dia. Pensar em mais mesas. Depois desta. A do Mesa.

Cinema Paradiso


É sobre o amor. Sobre a saudade. Sobre a magia inicial do cinema. Sobre o olhar limpo de uma criança. Sobre acreditar. Sobre a beleza. Sobre a abdicação. Sobre a nobreza da amizade. Sobre a paixão com que podemos escolher fazer as coisas. E também sobre a passagem do tempo. É sobre o que quisermos. Acaba por ser sobre o que quisermos. Um dos filmes mais bonitos. Nunca se vê sempre da mesma maneira. Eu sei que já o vi muitas vezes. Em circunstâncias muito diferentes. E que consegui sempre acrescentar coisas ao primeiro olhar. Pormenores que tinham sido vistos sem ficarem suficientemente no interior. Imagens que não tinham sido compreendidas na sua essência.
É difícil falar e pior ainda, escrever sobre algo que nos ultrapassa, de tão belo. É assim, o Cinema Paradiso de Giuseppe Tornatore. Fica-nos a voz viva do menino que entrava de olhos brilhantes na cabina do Cinema Paradiso. A dádiva da amizade com o homem que fazia com que acontecesse magia na sala escura do cinema. E imagens muito belas de um tempo que passou. Elementos presentes, que passam despercebidos ao primeiro olhar. Os limões numa taça, na mesa. A mesa da infância, quando tudo é possibilidade, de tão novo. E depois, trinta anos mais tarde. A mesma taça de limões na mesa do regresso. Quando todas as possibilidades aconteceram. E ainda assim, a sensação de nada ter mudado naquele lugar abandonado. Ou de não se saber como se regressar. Neste não-saber, a imagem do pudor de uma mãe que não precisa de justificações, que não precisa de dizer nada para acolher, trinta anos depois de uma partida.
Todas as alterações na maneira como se vê um filme, ali. As sociais, as de arquitectura, as técnicas. E as mais fundamentais, as que dizem respeito ao que cada um de nós vê, quando se senta numa sala de cinema. Porque há mesmo experiências que são de ter por inteiro. Nada substitui a sala escura de um cinema. A antecipação dos momentos prévios. O silêncio durante. O estarmos concentrados ali. Sem termos possibilidade de carregar num botão obediente que anda para a frente ou para trás. Não determinamos nada. Embora possamos sempre escolher sair a meio. Sair. Nunca somos os mesmos, depois de termos assistido a um bom filme no lugar que lhe pertence. Podemos falar ou não. Mas a sensação de que os nossos gestos não são os mesmos. A sensação de prolongarmos a narrativa. Mais atentos à realidade, porventura. Para extrair dela aquilo que é cinematográfico, narrativo.
Um filme que nos ensina a ver um filme. Da melhor maneira que se pode ensinar: sem nos apercebermos que estamos a ser ensinados. E durante, a comoção. Comovermo-nos como se fôssemos crianças outra vez. Como se nos fosse devolvido o olhar inicial da infância. Ficam duas imagens. Os olhos brilhantes da infância. E os olhos brilhantes de alguém que achava que não. Que os olhos já não iriam brilhar da mesma maneira. Mas sim. Um brilho recuperado. Se calhar, somos capazes de ir a tempo de recuperar alguns dos nossos olhos brilhantes de criança. E deixá-los em suspenso. No absoluto a que pertencem.

Dia não.



Uma daquelas expressões, esta. Estar num dia não. Ser dia não. Dias feitos de nãos. Acordamos e achamos que sim. E depois, não. Todo o irreconhecível de uma palavra tão breve. Devia ser insignificante, de tão breve. Mas não. Fundamental, antes. Conseguir ouvi-la. Conseguir dizê-la.
Num dia não, a única saída é quase sempre ir ao fundo do que nega. E só conseguimos realmente o tal fundo, se o olharmos de frente. E a sós. Para que seja entendido, integrado. A sensação de querer o cimo de uma montanha ou estepes que não acabam. Os extremos dos pólos gelados ou a quietude de um deserto. E não, não deu para nada disso, o dia não. Para verde e lilás no jardim. Para música que faz com que aconteçam estepes, desertos e montanhas. Jóga. Unravel. Queria a música da voz que é estes lugares. E tantos outros que não conheço. Representações de lugares onde estar a sós, no fundo.
Num dia não, uma mesa com hortelã-pimenta num copo de água. Hierba buena, como na América do Sul. Pedras. E um bocadinho de luz. Uma espécie de lugar para querer estar num dia não. E sentir que no final, afinal é sim. Que o dia não conseguiu um sim. Um jantar, uma mesa e a música dos tais lugares longínquos para onde queremos ir nos dias feitos de nãos. E este sim. Dizer este dia também pode ser um sim.

Para a minha Sandra dos livros:  
Estou preocupada consigo, Sandra. Não por nunca mais a ter lido aqui. Mas por não a ler no seu blog. Isto dos afectos é mesmo assim. As pessoas acabam por fazer parte. E o silêncio tem destes efeitos. Não saber é sempre pior, creio. Por isso, tente dizer só se está bem. Não precisa de dizer mais nada. Quero só sabê-la bem. Mar

Chegaram!



Eu não sou muito de exclamações. Nem de reticências. Mas seria uma espécie de sacrilégio assinalar o regresso do fruto mais bonito com um ponto final. Seria o mesmo que dizer que chegaram e pronto. E não. Porque quando elas chegam, significa que está para chegar tudo o mais que é doce e vibrante.
Como todos os anos, antes da primeira cereja, três gostos. Ou desejos. Os termos variam, pelos vistos. Uma daquelas coisas que se faz com uma certa ingenuidade. Recuperada não sabemos bem de onde. Mas não custa nada pedir três desejos e guardar segredo. Claro que esta parte dos segredos ainda é uma abstracção para o meu filho, que os revelou logo:). Está a aprender isto de conservar coisas só para si. Precisa de tempo. Cerejas na casa elementar de uma amiga a quem quis ir dar notícia de que já era tempo delas. Um contexto branco, para que dominassem por inteiro. Por não precisarem de mais nada.
E a imagem da árvore, guardada há semanas. No auge do rosa das flores da árvore das cerejas. Embora a cerejeira do meu jardim seja japonesa, o que significa que não dá cerejas. Como uma mulher muito bonita, a minha cerejeira que não dá cerejas. No auge da beleza toda que oferece ano após ano. E quando há um bocadinho de brisa, há também rosa em fragmentos a espalhar-se por todo o lado. Bocadinhos da minha árvore por todo o lado, a voar. Em fragmentos rosa.
Ficam então as flores deste ano. E os frutos que acabaram de chegar.

Just like that.

Há umas semanas que não. Olhava-os. Parados numa estante. Em suspenso. De relance, sempre. Não apetecia. Sempre foi assim, isto. De apetecer ou não. De ser ou não absolutamente urgente. Um bocadinho de culpa. Por estarem há tanto tempo sem dança, os meus sapatos mais cruéis. Mas voltou tudo. Bastou acontecer a música certa para voltar tudo. Bom, quando acontece regressarmos às coisas de que gostamos muito. Just like that.
E a narrativa. Com todos os segredos imprevisíveis que encerram as narrativas. A acontecer. Como tudo o resto. O mais belo destes dois dias. E o tanto que pode acontecer em dois dias. Mesmo que condensados em dois parágrafos breves. Registados então, os dois dias condensados. Lidos num respirar. Just like that.
To the writer who writes as if he is dying. Thank you for being there.

Sem preço.




Começa-se sempre pelo início. Este início diz que se vai falar de coisas que não têm preço. Óbvio, de tão declarativo, o título. Isto porque me dei conta de que todos os dias se fala ou ouve falar um bocadinho mais de dinheiro. Pode assumir várias formas, pode haver vários conceitos. Que deixamos de querer entender, de tão repetidos. Mas o fundo está lá. E é sempre o mesmo. Dinheiro. Coisas que custam dinheiro. Falta de dinheiro. Taxas de juro. Dívida soberana. E tudo o mais que, pela reiteração, deixamos pura e simplesmente de ouvir. Ruído de fundo. Mesmo aqui. Porque por mais frugal que seja uma receita, implica custos objectivos. E chegamos ao mesmo ponto. O da palavra que ouvimos demasiadas vezes.
Mas já é fim-de-semana. E quis muito falar de uma daquelas coisas que é sem preço. Por não custar nada. Um parque. Um jardim. Um lugar junto a um rio. Não sei bem o termo certo. Sei que é um dos lugares mais bonitos que conheço. Onde nem sequer há pretextos para gastar dinheiro. Por ser só árvores, relva e água. Um lugar para deixar crianças à solta. A ver se elas descobrem uma parte do mundo que é fácil. De tão verde. De tão cheia de água fresca e limpa. A tal que nunca é a mesma. E não.
É muito perto de mim, este lugar. E antes ainda de ser um lugar perto de mim, já achava que era um dos sítios mais bonitos. De tão elementar. Se tivesse que ir embora e se só pudesse recordá-lo de olhos fechados, seria só verde. E água. E luz. Silêncio às vezes. E risos de crianças. Muitos.
No dia das imagens que ficam, o meu filho descobriu sem esforço que era capaz de andar de bicicleta como os grandes. Tão leve, que estava. Enquanto a mãe tranquilizava um bebé que estava a chorar porque o irmão fazia o mesmo. E havia um pai aflito:), com duas crianças num pranto comovente e solidário. Então, ofereci colo. Carinhos sussurrados. A juntar, o inevitável: saudades.
E é fim-de-semana outra vez. Dá mais para olhar a luz nas árvores. Para livros junto à água. E ouvir. Ali, dá para ouvir coisas sem preço. A felicidade das crianças. O sorriso silencioso de mãos dadas de quem quer bem. Até as vozes atarefadas das mães que dizem que está na hora. Mas nós sabemos como são as coisas. As crianças querem sempre mais um bocadinho daquilo de que gostam muito.   

No dia do vestido que só se usa uma vez.

Todos os anos, neste dia, liberto o vestido que só se usa uma vez. De uma caixa, surge o vestido branco. Gosto de o vestir. Uma daquelas coisas que fazemos sem sabermos realmente porquê. Ou talvez não. Talvez saiba exactamente porquê. Para tentar recuperar aquele dia. Para o tornar visível outra vez. A igreja que cheirava a frésias e a flores de laranjeira. As pessoas. Os sorrisos. As palavras. As meninas encantadas com o vestido branco. A voz da minha mãe a cantar um salmo numa igreja de pedra. E o perfume dele. Sei que reconheceria o perfume dele em qualquer parte. Coisas que são este dia, há uns anos atrás.
Houve sol para aquele dia. E chuva. Ao final da tarde, chuva. Por essa altura, estava descalça. Já não havia véu. Nem cabelos disciplinados. Era eu com os cabelos soltos. Descalça. Num vestido branco escolhido meses antes. A noiva mais rápida, disseram as senhoras que estavam. Não houve provas intermináveis. Nem indecisões ou decisões de última hora. Sabia que o meu vestido devia deixar ver os ombros. Que não devia ser intangível, irreal ou demasiado mágico. Que devia ser assim como eu. E que devia permitir que eu pudesse soltar os cabelos e andar descalça.
Como todos os anos, libertei-o. Vesti-o. E olhei-o ao espelho. Para ver bem o dia de hoje. Há oito anos atrás. Queria olhar bem para trás. Muito lentamente. Para saber que quero continuar a olhar para a frente. Sem usar palavras definitivas. O para sempre. Não existe isso. Nem mesmo nos contos de fadas. Olhar para a frente sem palavras definitivas, então.

Os frutos da árvore que não dava frutos.


Por esta altura, a minha árvore que não costumava dar frutos, está perfumada de flores. E tem frutos. Diziam todos que não valia a pena. Que devia ser cortada e substituída. Pedi uma segunda hipótese para a laranjeira. Mais um Inverno. E na Primavera, ela daria frutos. No ano em que o meu filho nasceu. Foi assim. Passou a haver laranjas na árvore que costumava não dar frutos. Bastou esperar que chegasse o tempo dela.
Agora que sim, que surgem todos os anos, apetece transformar os frutos em mais coisas. Em coisas que dêem mais frutos. Um pudim de laranja. Muitos ovos. E laranjas frescas, acabadas de ser apanhadas da árvore que ia ser cortada. Algum açúcar. Um doce muito doce. Daqueles de que as pessoas costumam gostar muito. Por significar um bocadinho de transgressão, talvez. Não sei. Talvez os doces conventuais tivessem essa componente. A de permitirem um bocadinho de transgressão.
Então, o pedacinho de transgressão:) faz-se assim:

400 g de açúcar + 2dl de sumo de laranja + 1 cálice de vinho do Porto + 22 gemas de ovos + 200 g de açúcar (para o caramelo).

Começamos por "forrar" uma forma de pudim com o caramelo e reservamos. Entretanto, leva-se ao lume o sumo de laranja com o açúcar e conta-se cinco minutos a partir do momento em que começa a ferver. Decorrido este tempo, junta-se em fio à mistura das gemas e do vinho do Porto, usando um batedor de varas. Leva-se ao forno em banho-maria durante cerca de uma hora.
Fica pronto, depois. O pudim feito com as laranjas da árvore que não dava frutos. E que ia deixar de existir aqui. É bom saber esperar pelo tempo certo. E é bom quando a Natureza nos lembra isso. Que às vezes devemos aguardar e pronto.  

Mesa para o dia da palavra pequena.




É muito breve, a palavra que enche o dia. O de hoje. E os outros todos. Todos os outros dias em que somos aquela figura que dá banho e veste e tenta passar creme em corpos pequeninos que se mexem demasiado. Parecem imperceptíveis, esses gestos quotidianos. Achamos que não vão ficar. Que são gestos de manutenção. Alimentar, lavar os dentes, ensinar a usar o guardanapo no colo e a manter os cotovelos afastados da mesa. Uma aritmética difícil, que exige persistência e doses de paciência que não se conseguem medir.
Para o meu filho, sou essas coisas todas. Não sou quem joga à bola e anda de barco no rio. Não tenho braços musculados e fortes, que fazem lembrar os heróis das bandas desenhadas. Não sou capaz de muitas coisas. Há muitas coisas que me faltam. Mas sei que para ele, a representação imediata da mãe é sinónimo de cabelos longos, saltos altos e vestidos um bocadinho curtos:). Uma mãe que cheira a flores e que dá banhos que o acalmam. E sei que, se no meio das brincadeiras todas que há lá fora, acontecer uma mágoa, ele vai refrear o choro. Que não vai querer chorar lá fora. Para vir para junto de mim. Para poder chorar o que o magoou lá fora. E fica tudo bem, depois desse momento só nosso. Fica sempre tudo bem.
A mesa de hoje não foi para mim. Nem sequer para as outras mães que estiveram. A mesa de hoje foi para ele. As borboletas brancas suspensas nas folhas verdes são para ele. O pássaro de porcelana também. E um outro que encontrou lugar nos ramos frágeis de uma árvore breve. E então, por entre a agitação do dia, no meio de todos os lugares que ali estiveram, ouvi-o dizer que a mãe era como as borboletas brancas da mesa. Lindo, no imaginário do meu filho, ser assim representada.
Neste dia, lembro-me sempre das mães que não são. E que não são, porque não aconteceu assim. Às vezes, há mesmo coisas que nos ultrapassam. E o mundo acaba por ser um bocadinho impiedoso. Um bocadinho impositivo. E por todo o lado, coisas que dizem que é suposto. Que é suposto conseguirmos ter filhos. Ter maridos. Ter casas organizadas. Trabalhos que correm sempre bem. E sentirmo-nos realizadas. Tão cheia de arrogância, esta ideia da realização. A carecer de densidade. A transbordar de sobranceria. Afecto para as mães que não são. Para todas as mães que querem muito isso. Ser mães. Há-de haver um sentido para tudo o que não se consegue ter ou fazer. Libertador, acreditar que sim.

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