Uma longa janela para a avenida.


Há sítios a que voltamos uma e outra vez. As circunstâncias podem ser diferentes. Os contextos. As histórias momentâneas associadas. Mas voltamos. Porque sim. Este é um dos meus sítios na cidade que tem a luz mais bonita. Bem no centro de toda a agitação. Os carros a passar. As pessoas. As de caminhar determinado, com objectivos traçados. E as outras, em deambulação. E tudo o que se pode imaginar a olhar cada uma das histórias que passam por nós. Pelas janelas abertas para a avenida. Para almoçar, sempre. De dia sabe melhor parar no LA Caffé. Pausas que sabem quase sempre a risotto. Por ser o que me apetece, ali. Desta vez, a minha interrupção foi de açafrão. Com o exotismo no ponto certo. As sopas são aquilo a que eu chamo sopas de mãe. Embora haja variações a partir do básico. Em todo o caso, é bom que antes das variações, o essencial esteja assegurado. Uma daquelas premissas fundamentais. Saladas muito leves. Vinho a copo. Massas. E outras coisas a descobrir.
O cenário interior deste lugar vai mudando. Um bocadinho volátil. Renovado ao ritmo das coisas exteriores que se vão alterando. Independentemente dessas alterações, permanece o conforto de um ambiente declaradamente urbano. Que podia ser deslocado para qualquer outra cidade do mundo. Há livros espalhados. Sofás onde ler revistas e jornais. Eu gosto de uma mesa a olhar para a Avenida da Liberdade. De um risotto. Que o pensamento esteja à solta. E que permaneça livre. Coisas que sentimos quando estamos no meio de muitas pessoas. E que gostamos de revisitar, numa espécie de eterno retorno.

No "dia inicial, inteiro e limpo".



Sempre o mesmo, que se sente. Depois de outros lugares, regressar ao lugar de sempre. Ao lugar que nos conhece. Aos espelhos da casa que acolhe em silêncio, sem cobrar o facto de se ter ido para longe. Sem ressentimentos, as casas que nos acolhem. E sei que a distância que procuro de vez em quando, serve só para renovar o gosto que sinto em voltar. Porque depois de uns dias sem cozinhar, sem pôr mesas, sem ir ao jardim em busca de flores, sinto uma falta persistente. A de estar aqui.
E então, apeteceu também o regresso à música inicial. Concerto para clarinete, Mozart. Música para um dia inicial, inteiro e limpo. Belas, as palavras limpas que disseram todo o significado de um dia.
Para não me esquecer deste regresso à mesa, um vinho tinto. Denso e portentoso. De sentir a terra de onde veio. A identidade quente do Douro. Um vinho com nome de gente. Brites Aguiar. Já tinha bebido de outros anos. O de hoje era de 2007. Tão inesquecível como os outros. Uma memória a escorrer num copo alto, a de hoje. Sol e uma mesa branca. Uma mesa que se quer sempre inicial, inteira e limpa.  

Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo
Sophia de Mello Breyner Andresen

Voltar.



Voltar. Depois de ter ido. Depois dos lugares que já foram. E que hão-de encontrar lugar aqui. Depois de terem sido vividos. Tempo. Havia uma enorme vontade de tempo. Para estar a sós. E em silêncio. Para olhar demoradamente os que amo. Para acrescentar memórias ao meu pequenino que está a crescer tanto. O meu menino que é tanto. Disse-lhe que ia a um palácio como os das histórias das princesas. E ele perguntou se as princesas do palácio eram como a mãe Mar. Ser então uma princesa para o meu filho. Seja.
De contos de fadas, este lugar silencioso. Deu para ouvir a chuva durante o jantar. Enquanto o meu filho se deliciava com uma sopa parecida com a sopa da mãe. Por saber a casa, talvez. Uma janela para o verde persistente de Sintra. Que escorre pelos muros. Pelas paredes dos palacetes abandonados. Pelos caminhos que levam sempre a mais verde.
As manhãs acordam assim, naquele lugar. Verdes e silenciosas. A quietude que vem assim, pela janela. A lembrança interior do Palácio de Seteais há-de chegar sempre desta forma. Por uma janela de onde se avista todo o verde que os olhos conseguem ver. E há-de ser também a imagem do meu filho a interiorizar as coisas que quero ensinar-lhe agora. Para que mais tarde possa escolher não as seguir. Se acontecer assim. Mas que as saiba antes. E que venham da mãe. Coisas pequenas que são amor. E que são o sorriso dele a olhar o homem que estava a tocar piano. As palmas breves de seis anos, a agradecer a dádiva da música. E a mãozinha quente dele. Nas minhas mãos. Felizes, as nossas mãos. E o carinho do olhar contemplativo que gosta de deixar a mãe e o filho entregues à ternura indizível das mães e dos filhos.  
Belo e quieto, este lugar. Corredores que vão dar a salas em tons pastel. Móveis antigos que foram mantidos para contar mais histórias. Janelas para o infinito. Ou para a serra. Ou para jardins labirínticos. Para voltar. Com mais chuva. Ou com sol. Não importa. Algures, hei-de existir mais neste lugar de fadas e princesas. Sei que sim. Que hei-de voltar.  

Ir.



Ir, então. Deixar de. Abandonar um bocadinho. Suspender. Ir por ir. Por partir de um ponto e chegar a outro. Conhecido e desconhecido. Com memórias ou sem elas.
Desaparecer por uns dias. Deixar de existir aqui por uns dias. Ter saudades de existir aqui. E em todos os outros lugares de todos os dias.

Mais um bocadinho de sol.



Por estes dias, um aroma inebriante. Irreproduzível. Intraduzível. O das flores de laranjeira. E sempre de repente. De um dia para o outro. Adormece-se e não está lá. De manhã cedo, já é um facto consumado, a espalhar-se pelo jardim. Há laranjas, ainda. A serem lentamente substituídas pelas flores. Foram recolhidas. Para serem um lanche que quis guardar aqui. Porque me fez muito feliz, este lanche frugal. Compota de amoras espalhada em fatias de pão torrado e sumo fresco de laranjas trazidas num cesto. Um ritual muito elementar, afinal. A evocar a dimensão sagrada das coisas pequenas. As que estão muitas vezes ocultas. Mas era tão impossível ser indiferente ao aroma das flores. Tão difícil o exercício de o tomar como certo ou expectável. Por isso, era urgente vir para junto da árvore. Olhar as flores e colher os frutos.
O sol é doce, como os frutos. Filtrado pelo chapéu de abas largas. O que o meu filho diz que é como os das mulheres dos filmes. Uma sensibilidade muito bonita, a do meu pequenino que está a crescer. E a aprender lentamente a interpretar as imagens. A torná-las suas pelo discurso e pelo olhar. Filtradas
Gostava de deixar o aroma das flores de laranjeira. E o sabor do sumo fresco que transformou um fragmento breve de tempo numa memória prolongada interiormente. Não dá. Só dá para as imagens. E para palavras que tentam dizer o belo das coisas elementares. Receitas que nos fazem viver mais o sol. Que nos fazem querer sempre mais um bocadinho de sol.

Mousse de Maracujás


Feito num vislumbre, este doce. Tão simples. O doce a contrastar com o ácido da fruta. Fruit de la passion. Passion Fruit. Para nós, maracujá. O elemento mais bonito da mesa do almoço de hoje. Servido em copos de água, com traços de ouro.
A lembrar as virtudes da simplicidade, esta sobremesa. Porque apesar de gostar muito de todo o tempo e paciência que dedico a fazer comida, é sempre bom quando acontece assim. Quando não são precisas muitas operações para termos um pedaço efémero de prazer. Quando não há ingredientes rebuscados. Foi assim, com este doce que recuperou frutos que, para os franceses e para os ingleses, evocam paixão no nome.
Porque está calor. Porque há tempo que já desperta vontade de Verão. De Verão dourado na pele. O tempo que nos desperta está aqui. E é feito de sol, de calor e de luz. Eu quis acrescentar uma mousse de maracujás. Muito fresca. Com a consistência certa. A encerrar uma refeição luminosa.

12 maracujás + 1 lata de leite condensado + 4 iogurtes gregos

Retira-se a polpa dos frutos com uma colher. Junta-se depois o leite condensado e envolve-se bem. No final, adiciona-se os quatro iogurtes. Basta ir ao frio durante uma hora. Mas pode ficar lá o tempo que quisermos:)

Três linhas de instruções e mais uma de ingredientes. Eu tinha dito que era simples, não tinha?

As long as.



E um dia de sol, pede uma mesa luminosa. E um almoço prolongado e calmo. Uma brisa muito ténue. E silêncio interior que diz que está tudo bem. As long as there is a table. E vontade para pôr uma mesa. O Domingo soube ainda melhor, depois de uma semana de trabalho prolongada até ao último sol de Sábado. Não importa. Havia hoje. E hoje foi assim. Tempo para olhar as coisas. De manhã, enquanto o verde do jardim estava adormecido. Descer as escadas até ao meio do verde. E não haver mais nada para além disso. E acima, todo o azul que se quisesse.
Uma mesa feita a partir do branco das jarras que já foram velas. As Dora Maar pequeninas. E cristal trabalhado com paciência. Copos de há muito tempo. Muito anteriores às mãos que os colocaram à mesa.
As mesas ensinam-me que há sempre mais. Que posso sempre mais. Mesmo que interiormente vá desistindo de algumas coisas. Ainda assim, há sempre esta possibilidade. A acrescentar minutos de vida. À vida. No entretanto, à mesa, brinda-se a isso. Ao facto de se estar aqui para mais uma mesa.

A tempo de uma mesa.



Conservar. Depois de verbalizar. Difícil, verbalizar. Principalmente pelo indizível que enche o tempo de vida. Uma semana com tempo apressado, febril. Mas sem esquecer a ideia de mesa. Das coisas que são vividas quotidianamente aqui. À mesa de sempre. A que espera por nós, ao final do dia. Materialização do que há no pensamento, enquanto avançam as horas que compõem os dias. Pensar nas coisas que vão estar à mesa. Mais ainda, quando o tempo nos exige atenção e dedicação em doses que achamos que não são/não eram possíveis. Ainda mais nessa circunstância. Haver a ideia persistente de regresso. Do bom que é regressar a casa. E à nossa mesa. Enchê-la de nós. Da vontade de verde e de sol que há em nós. Sobre tabuleiros de chá orientais. Plantas que fazem companhia aos bonsais, para eles não se sentirem tristes. E, mesmo que a racionalidade que há em mim, saiba que não é suposto os bonsais ficarem tristes, achei poética a ideia de haver pedaços de verde que têm como única função impedir que as árvores se sintam sós. Quis trazer estas plantas para a mesa. Retirar-lhes esses atributos. Só o tempo de uma mesa. Só o tempo de uma refeição. Acrescentar doces da época que se adivinha. Ovos de chocolate branco e côco. Numa taça de champanhe. O resto é matéria que dá origem ao que vem depois. Loiça branca, toalhas brancas.
Porque houve sol. Porque houve vento morno ao final da tarde. E lá fora, um céu que não pode ser dito, de tão infinito. O céu nocturno que acolhe todos os nossos silêncios. E pensar que amanhã há-de haver mais sol. Mais vento morno. Mais verde. E mais mesas.

Antes que o dia acabe.




Muitas coisas, no dia de hoje. A acabar com o pior dos desalentos: o colectivo. E mais directos. Mais comentários. Mais últimas horas. Mais comentários. Mais palavras discursivas. No abismo. Mais palavras para lermos ao contrário. Por não significarem. E por outras coisas que não cabem aqui. Porque aqui, hoje, é o dia inteiro de uma amiga. Porque foi o dia em que nasceu a minha amiga Maria.
De corpo frágil de bailarina e alma grande, inteira. Uma daquelas pessoas que está. Que existe em forma de dádiva. Que ensina uma arte. Faz com que as pessoas dancem, a minha amiga leve. Transforma a música em dança nos corpos. Tão generosa, que no dia em que fiz trinta anos, me ofereceu uma dança. Ao som de música que não se gasta, de tão etérea. Dou-lhe hoje o melhor que posso dar. Palavras que a tentam dizer. Imagens que tentaram guardar um final de dia de aniversário. Que foi de conspiração sussurrada. Telefonemas matinais sobre um bolo negro por fora, com a cruz branca dos The XX. Sorrisos cúmplices. E alegria cheia de sol. Até chegarmos todos a uma mesa, num lugar junto a um rio. E o aroma das glicínias por todo o lado.
O dia é dela. Este dia histórico por motivos tristes, pertence-lhe. E à ideia muito preciosa que esteve à mesa. A de gostarmos de gostar dela. Sem que importe se era final de dia. Se esta está a ser uma semana particularmente cheia. Se há afazeres e compromissos que ficaram em suspenso. Havia uma vida para celebrar. Era isso que era urgente fazer. Estar ali. E ter pensado num bolo que a dissesse. Num presente onde pudéssemos guardar os nossos nomes. Registados neste dia. Enumerados numa página em branco. A abrir um livro que há-de ser aquilo que ela quiser que seja. Oferecido por cada um dos nomes na página em branco.
E registar também o reencontro com a alma inquieta da Leninha. Grécia, Índia, Macedónia. E agora aqui. Sempre por enquanto. Abraços prolongados sem perguntas. Como se tivesse sido ontem. Como se não tivesse havido um intervalo de meses, desde o último abraço.
Para nos lembrarmos que o nosso mundo seria menor sem a Maria. Sem a dança, sem a música, sem os sorrisos, sem os abraços. Para me lembrar que o meu mundo não seria tão bonito, se ela não existisse nele. Obrigada por isso. Por existires. E por aquilo que diz a música. I'll stay in the darkness with you. É o que fazemos pelos nossos afectos, também.
Uma página aqui. Da Maria. Antes que o dia acabe.
NB: Obrigada à Cristina. Que concebe emoções em forma de bolos. Pela paciência com a Mar, que faz sempre pedidos destes:)

Mousse de Frutos do Bosque


Havia uma enorme vontade de fazer uma mousse de frutos vermelhos. Ligeiramente ácida. Não muito. Com os frutos quase intactos, para não lhes mitigar a beleza. Amoras, framboesas, mirtilos. Este é um daqueles doces sem grande história. Porque é fácil de fazer. Porque é relativamente rápido. Porque é quase consensual (apesar de o meu filho não apreciar especialmente:). Porque não tem nada de sofisticado ou elaborado. E porque sabe bem, de tão fresco. E é bom que as coisas nos saibam bem. Que nos façam bem. Realizações breves do que nos faz bem. Em forma de mousse, desta vez. Com um pano de fundo exuberante. As flores que estão a espalhar-se com o sol quente da Primavera.  

E antes das flores, aconteceu isto:

150 g de frutos vermelhos (frescos ou previamente descongelados) + 2 pacotes de natas + 1 lata de leite condensado + 1 folha de gelatina branca.

Simples: aquecer os frutos vermelhos (usei congelados), juntar-lhes uma folha de gelatina previamente hidratada em água fria e envolver até que a gelatina se dissolva. Juntar a lata de leite condensado aos frutos vermelhos e mexer. Adicionar depois às natas batidas. Envolver com cuidado e levar ao frio durante umas horas.

Um mundo de coisas boas para a voz de Define Joy. Esta é uma das possibilidades de definição para alegria. Um doce com uma cor bonita, vibrante. Obrigada pela definição breve de alegria. Café, água tónica e conversa com tempo. Coisas simples. O melhor de tudo o que está para vir. E que seja full of joy:) Como um dia de sol.

Para partilhar.





Sempre bom, saber da existência de lugares que nos acrescentam. Este é um desses lugares. Uma derivação muito feliz da Pastelaria Latina, em Aveiro. Lugar de final de tarde, na faculdade. Lanches longos com a amiga que estava sempre lá. Um ritual quase diário, para dizer o dia. Em torno de chá, croissants pequenos e bolinhas de pão com manteiga.
E aos sítios onde se foi feliz, volta-se sempre. A contrariar aquela outra ideia. A de que não, que não se deve voltar. Mais ainda quando as coisas se reinventam, para sermos recordados de que tudo segue o seu curso. Este é um desses casos. Porque a acrescentar à casa-mãe, há agora a Adega Latina. Vinhos, compotas, doces, massas, risottos, azeites, chocolates e cafés. Muita matéria-prima, neste lugar. Já conhecia de outras circunstâncias. Um bocadinho mais apressadas. Mas houve tempo, neste sábado. Para percorrer as prateleiras repletas de coisas que quis trazer. A pensar nas transformações subsequentes.
Apesar da minha tendência para a dispersão poética, há coisas bem concretas a dizer sobre este sítio. Primeiro, nota-se que há rotatividade e variedade. Muitas das vezes, acontece entrarmos numa destas mercearias e sermos confrontados com os mesmos vinhos, os mesmos chás, os mesmos chocolates. Quando é assim, acaba por ser uma questão de tempo. Até tudo terminar. Até chegar o fim dos prazos de validade nas embalagens.
Mas adivinho coisas boas, para a Adega Latina. A começar pela simpatia, sensibilidade e disponibilidade da Filipa. Um sorriso a acolher, assim que se entra. E informações muito competentes, muito correctas. Referências recentes e outras nem tanto. Contextualizadas. Sem pretensões, sem aqueles discursos herméticos sobre o universo gourmet. Uma palavra gasta, esta última. Tudo é gourmet. A ver se se torna especial só por ter essa terminologia associada.
Então, num sábado à tarde, descobri que neste lugar, havia Amaretti Baratti. Os doces de amêndoa que me fazem lembrar Milão. E que me fizeram ter vontade de fazer uma mousse de frutos vermelhos. Os vinhos recentes de uma personagem muito especial. Carlos Dias, que vendeu recentemente a Roger Dubuis, para se dedicar a fazer os melhores vinhos do mundo. Temerário. Vieram também, alguns dos vinhos do senhor português dos relógios suíços. A ver se confirmam as expectativas altas das palavras temerárias usadas pelo próprio. Massas, manteiga, compotas especiais da Latina. De laranja e de papaia. E uma oferta carinhosa da Filipa, envolta em papel branco. Os copos Hendricks. Para acrescentar beleza a um ritual diário. G&T, como dizem os ingleses. Gin and Tonic. Agora nos copos certos, o gin tónico de todos os finais de tarde.
Dizer obrigada, então. E pensar em voltar. Enquanto não, fica partilhada a referência.

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